A importância da interdisciplinaridade no Direito:
uma abordagem pela Literatura

Por Heloísa Salles Camargo e Iahn Jorge Soares

Arte elaborada pelos autores.
  1. O que tem sido o Direito?

O campo jurídico, ao longo do tempo, tem se ramificado em diversas e amplas áreas de atuação, englobando e afetando variadas esferas do saber e de agir em nossa sociedade. Ele também é responsável por impactos ativos e relevantes, sejam eles positivos ou negativos, nas vidas de diferentes atores e instituições sociais. Nesse sentido, cada vez mais o mundo jurídico é desafiado a buscar maiores diálogos com outros campos de saber, tidos como externos a ele e com os quais possui atuações e/ou objetos comuns ou concorrentes.

Esse maior contato se mostra necessário e aparece de forma mais presente nos cursos de Direito em nosso país nos últimos anos (e mesmo décadas). Porém, nossa visão é de que esse diálogo se apresenta como um desafio à área pelo fato de termos, ainda, um cenário de grande resistência quanto a ensinos, pesquisas e práticas jurídicas interdisciplinares, que extrapolem a mera análise e aplicação positiva e dogmática do Direito. É isso que nos mostra o professor Cláudio do Prado Amaral [1]:

Quanto ao corpo docente, ainda com formação puramente jurídica, é historicamente conservador no que diz respeito à inclusão de disciplinas não puramente jurídicas no curso de direito. A questão vai mais longe, pois o próprio corpo discente é em boa parte refratário às considerações não jurídicas profundas no exame da questão de direito.

A timidez no reconhecimento da importância da interdisciplinaridade no mundo jurídico é especialmente preocupante no cenário acadêmico, visto que é a partir dele que as bases para a atuação e o conhecimento do Direito são construídas, estabelecendo um plano de fundo mais ou menos comum aos futuros juristas. Assim, para pensarmos e debatermos sobre o tema e sua relevância, é importante que nos voltemos à noção de interdisciplinaridade que, segundo Atahualpa Fernandez [2], é:

[…] entendida em um sentido mínimo como a interação, coordenação e conexão de disciplinas distintas com o fim de melhorar as explicações fragmentárias sobre partes do mundo. Nesse sentido, a interdisciplinaridade se entende como a busca sistemática de integração das teorias, métodos, instrumentos e, em geral, fórmulas de ação científica de diferentes disciplinas, a partir de uma concepção multidimensional dos fenômenos, e do reconhecimento do caráter relativo dos enfoques científicos por separado.

Dessa maneira, o contato com outras áreas do saber aparece como sendo de grande potencial transformador para o Direito, capaz de fornecer-lhe maior contato com a complexidade das diferentes realidades sociais e mais adequadas ferramentas para lidar com elas. Partindo desse entendimento, este texto propõe uma reflexão sobre possibilidades e impactos, especialmente no contexto do ensino jurídico, de uma aproximação entre o Direito e a Literatura, aproximação essa já trazida antes em nossa plataforma por Carolina Capani em seu texto: “Entre Pasárgada e o trapiche: breve comentário sobre a sociologia jurídica em Capitães de Areia”.

2. Abrindo a porta de um ensino jurídico crítico:

Primeiramente, é importante que nos aprofundemos um pouco mais em uma análise do “Direito ensimesmado” e do ensino jurídico que sustenta essa visão. O Direito, de modo geral e enquanto área, preza especialmente por uma pureza refratária a outros campos sociais e de saber, justamente por se colocar como algo que deve estar separado da sociedade, de forma quase mística ou religiosa [3], para poder regulá-la e julgá-la imparcialmente.

Porém, embora de importância reconhecida para a área e para a sociedade em que vivemos, uma visão do Direito como autônomo e fechado em si mesmo reiteradamente vem se mostrando limitadora ao campo jurídico e à sua prática. Essa realidade faz com que, nas faculdades de Direito, o formato das aulas busque formar seus alunos enquanto “operários do Direito”, com foco principal nas doutrinas jurídicas, que [4]:

São obras produzidas a ritmo industrial, plastificadas, que por nascerem nessa redoma nada mais conseguem fazer do que a reproduzir, recontando-a mimeticamente. Um eco de uma cultura jurídica com base na morte, no imóvel. […] Nesse mundo acelerado no qual o direito também faz sua parte, o jurista vê-se condenado a utilizar seu tempo quase unicamente ao estudo de doutrina e jurisprudência.

Consideramos que esses conhecimentos e conteúdos no ensino jurídico devem ser constantemente acompanhados, embasados e/ou contrapostos por materiais interdisciplinares e conectados com diferentes aspectos da atualidade social, de forma que auxiliem os alunos a refletir ativamente e até a problematizar a matéria com a qual estão entrando em contato. Nesse sentido, cabe a crítica que Paulo Freire [5] fez aos modelos tradicionais de ensino — aos quais ele chama de ensino bancário — que estipulam uma relação hierárquica entre o professor e os alunos, na qual o primeiro é visto como único detentor de conhecimento legítimo. O professor, nesse modelo, faz um “depósito” de seus saberes aos alunos, que têm seu aprendizado medido pela sua capacidade de memorização desse conteúdo que lhes foi passado. Há, assim, o cultivo de um cenário estático de conhecimento, que desincentiva o seu desenvolvimento pela falta de interação dos estudantes com os temas que lhes são apresentados.

No ensino bancário, portanto, os discentes aprendem de forma passiva, desengajada, o que favorece uma reprodução acrítica do saber que recebem dos professores, não sendo vistos como capazes de contribuir para sua própria formação com novos elementos e perspectivas. Logo, não basta que a interdisciplinaridade atue no contexto do ensino jurídico nos moldes pedagógicos tradicionais já operantes, em que os estudantes continuariam sendo apenas receptores do saber interdisciplinar — o que, cabe pontuar, já seria um avanço frente ao cenário atual. Para que possamos ter um verdadeiro potencial transformador do Direito por meio da interdisciplinaridade, acreditamos, nessa linha, que a sala de aula deva ser um lugar que incentive o aluno a interagir com os conteúdos do aprendizado, sendo encorajado a relacioná-los com suas próprias visões, experiências e bagagem interdisciplinar.

Além disso, a visão limitada de uma pureza do campo jurídico também se mostra contribuinte para a perpetuação de desigualdades e injustiças em nosso ordenamento jurídico atual, o que reforça, por sua vez, a importância de (re)pensarmos constante e criticamente o ensino do Direito. Nesse contexto, o Direito busca entender e encravar, pelas lentes dessa visão estritamente jurídica, realidades e contextos que extrapolam o enquadramento positivo das normas e das teorias que sustentam essa ótica.

Quando o campo jurídico é visto essencialmente como Direito positivo e seus desdobramentos, temos uma abstração da prática jurídica, que passa a ser vista como neutra e impessoal aos diversos casos e contextos. Há a partir disso, portanto, um mascaramento dos interesses e das relações já existentes entre a sociedade e o Direito e já presentes e firmados em sua própria positivação. Nesse sentido, ao trazer a relação entre a sociedade, a política e o Direito a partir de Pachukanis, Soares [6] coloca que:

[….] a superestrutura jurídica revela nada além das relações de produções já existentes, enquanto a política, na figura do Estado, se desenvolve por conta dessas relações. Consequentemente, é a superestrutura política que deriva da jurídica. Com isso em mente, pode-se criar um itinerário de formação das relações para Pachukanis, de forma que as relações de classe (econômicas) geram as relações jurídicas (grifo nosso) que, enfim, geram as relações políticas. As três estão intimamente ligadas umas às outras, apesar dessa “ordem” de nascimento, porque ele afirma que o Direito é a base do Capitalismo, uma vez que toda troca demanda um aparato jurídico para embasá-la.

Reconhecido o Direito como produto das relações de classe, podemos entender que, ao nos fecharmos para um maior diálogo e interação do campo jurídico com outras áreas práticas e de saber e com a própria sociedade contingente, viramos as costas para a própria presença dessas influências já existentes no direito. Ao refletir, representar e proteger o interesse das elites econômicas, o Direito se coloca como estrutura de dominação das demais classes e grupos em prol das primeiras, ao mesmo tempo que oculta essa atuação por uma aparência de neutralidade e imparcialidade, sendo ainda de grande importância para a sustentação da forma de um Estado burguês que, conforme Soares [7]:

[…] é uma parte essencial do Capitalismo, porque é o que dá o caráter impessoal para as relações entre as classes, senão ficaria muito exposta a exploração que a burguesia faz sobre o proletariado, para tomarmos termos de Marx. Assim, o Estado atua como uma terceira pessoa nas relações sociais, principalmente nas de cunho econômico e nas trabalhistas. […] No entanto, a diferença consiste em que o Estado burguês somente finge ser um terceiro imparcial, pois ele, na realidade, serve como ferramenta para perpetuação das opressões de classe. Por isso, ele é um instrumento fundamental para a manutenção do poder da burguesia e, então, do próprio Capitalismo. (grifos nossos)

Ao resistir a uma maior interdisciplinaridade, portanto, estamos negando o próprio caráter enviesado e opressor do Direito Moderno. Também por meio dessa posição nos afastamos de possibilidades de obtermos uma maior eficiência e eficácia na aplicação de normas sociais e antidiscriminatórias já existentes, assim como daquelas que buscam o alcance de uma maior igualdade social e econômica entre diferentes grupos sociais. Nós nos restringimos, da mesma maneira, da criação de novas normas que contribuam para uma ordem social menos desigual e também da alteração ou abolição de vários outros princípios e disposições que atualmente servem uma ordem de desigualdades sociais.

É importante, nesse sentido, que o Direito seja desafiado pela interdisciplinaridade, que não a utilize de modo seletivo para apoiar teorias e visões que já existem nele e que contribuam para a manutenção de uma ordem desigual e opressora. Embora o Direito não tenha por regra a utilização clara de métodos e diálogos interdisciplinares, por vezes, o campo tem recorrido a esse uso de maneira discriminatória. Talvez o maior exemplo que podemos invocar com relação a isso seja a utilização da biologia pelo Direito, que possibilitou uma maior e mais escancarada reprodução do racismo pelo campo, como trazido por de Castro e de Almeida [8]:

As ferramentas de biologia, aliadas a ideia de raça no âmbito social permitiram a disseminação de hierarquia entre seres humanos e esta ideologia ganha os interstícios sociais gerando ódio, desconstruindo identidades, reforçando estereótipos, trazendo exemplos de como a prática do racismo como forma de manifestação de preconceito, impede o exercício de direitos básicos no Brasil.

Logo, contrário, o Direito deve ser impulsionado, de forma constantemente problematizadora e crítica de seus conteúdos, e em um constante devir, a ir mais longe e mais a fundo na análise e na prática de sua relação e contato com a sociedade, enquanto campo de saber e atuação. Uma aproximação legitimamente interdisciplinar deve apresentar pontos de diálogo, mas também de conflitos e indagações ao Direito, como própria forma de evoluir e se colocar, cada vez mais, enquanto uma área mais justa e menos opressora, especialmente com relação às minorias sociais — uma vez que elas são as maiores vítimas das injustiças e atuações desfavoráveis e enviesadas do Direito.

3. A saída pela Literatura

A partir disso, qual a nossa proposta? Existem diversas formas de inserir a interdisciplinaridade no Direito, porém desejamos utilizar, neste texto, o prisma da Literatura. Em um primeiro momento, pode parecer que ele não possui nenhuma relação com o Direito. Poderíamos esperar uma interdisciplinaridade com a Sociologia, com a Política, mas com a Literatura? Explicamos, a Literatura não é apenas um mero livro, algumas páginas com um enredo definido, ela vai além. As obras literárias são espelhos da realidade, porque os autores, ao as escreverem, possuem uma determinada finalidade para com a obra, seja a fama, ou a crítica a algum aspecto da sociedade, por exemplo.

Nesse sentido, a Literatura possui um forte papel social, até mesmo para a consolidação da noção de cultura e do pertencimento a ela. Por exemplo, o Romantismo foi importante para que o Brasil pudesse criar uma identidade nacional após a Independência do país, vide a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, que retrata um eu lírico saudoso da sua querida pátria. Apesar de ser uma culturalização forçada, advinda da elite para as massas populares, o importante é que foi o primeiro momento em que tivemos uma Literatura propriamente brasileira, atinente à nossa realidade do século XIX e anteriores. Além disso, a própria Semana da Arte Moderna, que completa 100 anos no próximo ano, teve como propósito questionar a identidade brasileira e recriá-la longe dos moldes europeus a partir do Modernismo. Consequentemente, o entendimento do “ser brasileiro” foi alterado, ao longo da nossa história, pelas Artes, em especial pela Literatura, nas suas mais diversas formas: romances, contos, poemas e crônicas, por exemplo.

Com isso, a Literatura se mostra uma ferramenta disponível para o Direito na medida em que revela as condições sociais: como as pessoas se relacionam entre si, como questões polêmicas são tratadas, como as visões de mundo se desenvolvem nos tecidos sociais, enfim, as mais diversas interações que o mundo literário tem com a realidade. Tal fato não se limita apenas às obras que se relacionam minimamente com o factual. Até mesmo as fantasias e ficções científicas podem adentrar no mundo jurídico, afinal tratam, especialmente, do nosso imaginário e de abstrações intangíveis ao Direito: como poder discutir, por exemplo, sobre Direito Interespacial sem o auxílio de Star Wars? Claro que Star Wars possui toda a sua fama pelos filmes, principalmente, mas já se mostra como um exemplo claro de como as Artes e, em especial, a Literatura podem contribuir para o Direito. Inclusive, o Thiago Horta publicou um ótimo texto neste site sobre Star Wars, vale a pena conferir.

Assim, cabe agora tratarmos das maneiras pelas quais o Direito pode interagir com a Literatura, a fim de dar maior concretude à nossa proposta. Inicialmente, existem três relações entre o Direito e a Literatura [9]: Direito como Literatura, Direito na Literatura e Direito da Literatura. O Direito como Literatura é inaugurado pelo juiz estadunidense Benjamin Cardozo [10], em que trata as decisões dos juízes como textos literários, aplicando as técnicas próprias da Literatura para melhor compreender não somente o conteúdo, mas também a forma das obras. O Direito na Literatura observa as manifestações jurídicas nas obras literárias não jurídicas [11], como os romances policiais. Essa relação foi firmada pelo John Henry Wigmore, ao criar a sua lista de “romances judiciários” [12], porque acreditava ser indispensável ao jurista compreender as nuances do Direito pelo senso comum, exposto na Literatura [13]. No entanto, a partir desse momento inicial, outras correntes surgiram. Assim, há, também, a relação de Direito à Literatura, defendida por Antonio Candido, em que a Literatura é posta como um direito humano inalienável: “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” [14].

Por fim, Anne Teissier-Ensminger formula a ideia de Direito pela Literatura [15]. Essa a corrente utiliza as obras literárias como uma ferramenta para detalhar as relações que o Direito por si não consegue, por exemplo a questão de como “se engrenam normas e costumes, o amor e o ódio às leis, as instituições e as trajetórias sociais” [16]. Dessa forma, ela enxerga, na Literatura, a possibilidade dos juristas serem “mais hábeis a perceber, no destino dos indivíduos e do grupo, o alcance e a razão das clivagens fundamentais entre o legal e ilegal, o permitido e o ilícito, o público e o privado” [17].

Por conseguinte, a relação mais interessante para os propósitos deste texto, ao nosso ver, é do Direito pela Literatura, por permitir uma aplicação mais ampla e diversa das obras literárias, afinal qualquer uma pode adentrar o mundo jurídico, desde que ela seja bem analisada. As demais relações acabam se fechando mais nas possibilidades. O Direito como Literatura se limita aos textos do Judiciário. O Direito na Literatura se insere em um nicho literário específico, já que precisa do conteúdo jurídico nas obras. Direito da Literatura e Direito à Literatura são discussões distantes da inserção da Literatura no mundo do Direito, porque trata dos aspectos burocráticos das criações e de formas de incentivar e garantir a Literatura a todos, respectivamente.

4. A Janela da Casa Verde

Para tanto, adentraremos em um exemplo prático sobre Direito pela Literatura para demonstrar como esta pode ser utilizada pelo primeiro mesmo em situações que podemos considerar como pouco prováveis para o propósito. Com “O Alienista” [18], Machado de Assis traz uma história sobre uma cidade, Itaguaí, onde um manicômio — a Casa Verde — é construído por um médico — o Dr. Bacamarte. A trama surge a partir da internação em massa da população, creditada como “louca” pelo psiquiatra. A partir desse brevíssimo resumo, podemos traçar um paralelo interessante com a forma que encaramos a saúde mental no Brasil. O livro é fictício, porém, por ser Literatura, carrega consigo as verdades miméticas da realidade. De início, seu autor denuncia a questão do tratamento das condições psíquicas, especialmente com relação aos casos de internação compulsória, que ocorrem de maneira a enxergar a pessoa quase como um perigo, uma bomba prestes a explodir, precisando estar distante da sociedade para a segurança de todos.

Vinte e um anos depois do livro ser publicado, tivemos, em Barbacena, a inauguração do hospital que se tornaria conhecido pelo chamado “Holocausto brasileiro”, devido ao tratamento cruel e desumano dado aos pacientes psiquiátricos. Ora, a distância temporal é curta, porém Machado já traz em sua obra as reivindicações da luta antimanicomial, que seria reforçada após o triste caso da Colônia, como o hospital era conhecido. Nesse sentido, o livro pode ser utilizado para externalizar como o médico psiquiatra possui um grande poder, afinal cabe a ele dizer quem está “saudável” e quem está “doente”, o que, na trama, é instrumentalizado para fins políticos pelos governos locais, colocados aqui no plural uma vez que a troca de poder não mudou a estratégia política do local. Ainda nesse ponto, o livro nos auxilia a compreender a importância de se formar psiquiatras mais preocupados com o verdadeiro cuidado humano. A Casa Verde não tratava ninguém, pelo contrário, servia para o encarceramento das pessoas sob o falso pretexto de saúde pública.

Mas como, então, podemos enxergar o Direito a partir de Alienista? Por certo, demandaria uma pesquisa mais aprofundada e qualificada. Entretanto, já podemos antecipar que ele demonstra a possibilidade de olhar o contexto atual da saúde mental no Brasil e as políticas públicas a ele relacionadas. O Direito se insere nesse ponto, porque é ele que, por meio de suas normas, pode dispor sobre a importância e peso dado à questão da saúde mental pelo Estado, regulando ainda a forma pela qual a Administração Pública pode atuar.

Para Pachukanis, o Direito também é uma escolha política, das relações de classe. Escolher quem será internado e como será o tratamento não é uma mera opção médica, é política. A Psiquiatria não se resolve apenas no ambiente hospitalar. Na realidade, a Drª. Nise da Silveira, de essencial e respeitável atuação na luta antimanicomial brasileira, discordaria fortemente dessa predominância do tratamento realizado nos centros psiquiátricos em detrimento de outras formas de tratamento, mais efetivas por enxergarem e tratarem o paciente como um humano, com direitos a serem assegurados. Portanto, sem o Alienista, essa discussão poderia não possuir tanta profundidade e atenção às nuances quanto caso se utilizasse o método do Direito pela Literatura, de extrair das obras conceitos ou ideias para serem aplicadas no mundo jurídico, levantando, para ele, importantes questões e reflexões.

5. O farol do porto:

Diante todo o apresentado, o caminho para maiores diálogos da área jurídica com outros campos, como o da Literatura, pode até se mostrar desafiador, frente aos obstáculos colocados por uma ainda dominante visão pura do Direito, porém se mostra aberto e farto para a exploração. É necessário que mais e mais pessoas pensem o Direito para além dele mesmo, por meio da interdisciplinaridade. Porém, esse caminho não deve se restringir ao individual. O ensino jurídico, por fornecer uma importante base dos saberes necessários aos juristas, deve se encontrar em constante movimento para melhor se comunicar com os contextos atuais pelos quais o Direito age e se manifesta. Para isso, a Academia e as salas de aula devem se mostrar receptivas e, também, determinarem-se a trazer cada vez mais perspectivas interdisciplinares no ensino do Direito, instigando e provocando os alunos a fazerem o mesmo a partir de sua criatividade e pensamento crítico.

Este artigo não buscou ser exaustivo no trato do Direito e Literatura, porque essa área tem a mesma extensão da criatividade humana, que pode vir a ser infinita. Desejamos apenas que você, leitor, após ter lido este texto, se sinta estimulado a inserir a Literatura no Direito nos diversos espaços em que achar pertinente. Nesse cenário, a importância do tripé universitário: estudo, pesquisa e extensão se mostra valiosíssima, oferecendo, especialmente as duas últimas, possibilidades mais amplas, atualmente, para a autonomia dos estudantes. Porém, o mesmo também vale para atividades da faculdade, trabalhos acadêmicos, peças jurídicas e outras brechas que podemos achar na própria sala de aula tradicional a fim que possamos questionar e estender o Direito a outras relações, âmbitos e perspectivas que extravasem o puramente jurídico. Enfim, as possibilidades são mil e você tem o poder para explorá-las.

Precisamos de pessoas pensando, pesquisando e aplicando o Direito e Literatura — assim como outras relações interdisciplinares — , para que a prática jurídica se renove e esteja mais atenta às realidades factuais da população. Estamos cada um em um porto, nos preparando para as nossas viagens, cada um com o seu próprio rumo, porém todos unidos pelo mesmo propósito, radicalizar o Direito. Não se preocupe caso se perca, porque o farol jamais se apaga.

6. Bibliografia

[1] AMARAL, Cláudio do Prado. Razões históricas de um sistema penal cruel. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 19, n. 218, p. 02–03, jan., 2011. p. 2.

[2] FERNANDEZ, Atahualpa. A (anti)interdisciplinaridade do direito: um “cemitério de ideias mortas”. Derecho y Cambio Social, Lima, ano XII, n. 42, 2015, pp. 6. Disponível em: https://www.derechoycambiosocial.com/revista042/A_(ANTI)_INTERDISCIPLINARIDADE_DO_DIREITO.pdf. Acesso em: 11 out. 2021. p. 1–2.

[3] FERNANDEZ, Atahualpa. A (anti)interdisciplinaridade do direito: um “cemitério de ideias mortas”. Derecho y Cambio Social, Lima, ano XII, n. 42, 2015, pp. 6. Disponível em: https://www.derechoycambiosocial.com/revista042/A_(ANTI)_INTERDISCIPLINARIDADE_DO_DIREITO.pdf. Acesso em: 11 out. 2021.

[4] CAMARGO, Luís Henrique Kohl; GABIATTI, Daniel Albherto; MELLO, Régis Trindade de. Do eurocentrismo à libertação: o papel da teoria crítica do direito na construção de um pensar jurídico autêntico latino-americano. Unoesc International Legal Seminar, Chapecó, v. 2, n. 1, p. 423–446, 2013. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/235132329.pdf. Acesso em: 11 out. 2021. p. 433.

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[6] SOARES, Iahn Jorge. O monstro de 1988: uma análise das relações criador-criatura. 2021. 115 f. Relatório final (Iniciação Científica em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. p. 53–54.

[7] SOARES, Iahn Jorge. O monstro de 1988: uma análise das relações criador-criatura. 2021. 115 f. Relatório final (Iniciação Científica em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. p. 60–61.

[8] DE ALMEIDA, Jémerson Quirino; DE CASTRO, Alexandre. Da contravenção penal ao crime de racismo: uma história de impunidade. Revista Mosaico, v. 9, n. 15, p. 30–47, 2018. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/76867. Acesso em: 11 out. 2021. p. 33.

[9] MARTINS-COSTA, Judith. A Concha do Marisco Abandonada e o Nomos (Ou os Nexos entre Narrar e Normatizar). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 2, n. 5, p. 4121–4157, 2013. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/05/2013_05_04121_04157.pdf. Acesso em: 27 dez. 2020. p. 4122–4123.

[10] Idem, p. 4124–4125.

[11] Idem, p. 4125.

[12] Idem, p. 4125.

[13] Idem, p. 4126.

[14] CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 191.

[15] No original: Droit en Lettres. MARTINS-COSTA, Judith. A Concha do Marisco Abandonada e o Nomos (Ou os Nexos entre Narrar e Normatizar). Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 2, n. 5, p. 4121–4157, 2013. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/05/2013_05_04121_04157.pdf. Acesso em: 27 dez. 2020. p. 4130.

[16] Idem, p. 4131.

[17] Idem, p. 4131.

[18] ASSIS, Machado de . O alienista. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em dominío público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000231.pdf. Acesso em: 11 out. 2021.

--

--

PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.