Entre Pasárgada e o trapiche: breve comentário sobre a sociologia jurídica em Capitães da Areia

Por Carolina Capani

Longa-metragem “Capitães da Areia” (2011), dirigido por Cecília Amado. Produção: Telecine.

As justificativas para as interfaces possíveis entre o direito e a literatura remontam à célebre máxima “a arte imita a vida” — atribuída à mimesis aristotélica [1] –, conforme a qual podemos interpretar que a arte em geral carrega consigo diversas nuances e referências à realidade material e social do contexto espaço-temporal em que foi produzida. Entre esses retratos possíveis da realidade, podemos encontrar e perceber também o fenômeno jurídico, sobretudo no cinema e em textos literários. Assim, mais do que comuns são as referências curriculares das escolas de direito a obras como Antígona (Sófocles, aprox. 442 a.C.) e O Mercador de Veneza (William Shakespeare, 1600), utilizadas como estratégia para aprimorar o ensino jurídico e auxiliar na compreensão dos mais diversos temas e conceitos pertinentes ao estudo do direito, por exemplo, o Estado, a justiça, a sociedade, o poder, etc.

Da mesma sorte, é possível utilizar a literatura como ferramenta valiosa também para a compreensão da dogmática jurídica de ramos do direito específicos — desde a seara penal até família e sucessões ou comercial –, bem como temáticas atreladas ao estudo zetético do direito [2] — seja na filosofia e sociologia jurídicas, na criminologia, entre outras. Nesse sentido, propõe-se, ao longo deste breve comentário, tecer algumas reflexões iniciais acerca de como a teoria do pluralismo jurídico, na concepção de Boaventura de Sousa Santos, pode ser interpretada e retratada na obra Capitães da Areia (1937), de Jorge Amado.

Dessa forma, utilizaremos como bibliografia básica para a presente análise o capítulo segundo d’O direito dos oprimidos [3], obra não apenas das mais notáveis de Boaventura, como também de grande relevância para toda a sociologia jurídica. A tese principal do estudo é evidenciar a existência de um pluralismo jurídico moderno através da constatação de um sistema paralelo de resolução de litígios criado por “comunidades urbanas oprimidas” [4] a que o direito oficial não alcançaria ou o faria de maneira insuficiente e marginal [5]. Metodologicamente, a verificação empírica de sua hipótese deu-se a partir da decisão do autor em viver, entre julho e outubro de 1970, na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, à qual foi atribuído o nome fictício de Pasárgada [6]. Em síntese, eis a premissa essencial do estudo:

“Devido à inacessibilidade estrutural do sistema jurídico estatal e, sobretudo, ao caráter ilegal das favelas como bairros urbanos, as classes populares que aí vivem concebem estratégias adaptativas com o objetivo de garantir o ordenamento social mínimo das relações comunitárias. Uma dessas estratégias envolve a criação de uma ordem jurídica interna, paralela (e, por vezes, oposta) à ordem jurídica oficial do Estado.” [7]

Boaventura denomina essa ordem jurídica paralela de “direito de Pasárgada” e a coloca em constante oposição e atrito ao chamado “direito do asfalto”, isto é, o ordenamento jurídico nacional vigente e a representação ficcional do monismo jurídico. Conforme pretende-se demonstrar, não apenas nuances desse antagonismo entre dois regramentos concorrentes pode ser verificado no romance de Jorge Amado, como também todo o panorama econômico-social que fundamenta esse fenômeno nas comunidades fluminenses encontra paralelos na Bahia de Pedro Bala e companhia.

O romance Capitães da Areia — que, ouso dizer, está para a literatura nacional assim como O direito dos oprimidos está para a sociologia jurídica — conta a história de meninos de oito a dezesseis anos que vivem associadamente em um velho trapiche abandonado no cais de Salvador, e suas andanças e aventuras de “malandros” pela “cidade da Bahia”. Abandonados e desamparados desde a infância, têm em comum a constante “sede de amor e ternura, o desejo recorrente e desesperado de pertencer a uma família e conquistar um lugar digno na sociedade” [8], contando somente com um ao outro enquanto única rede de apoio e sobrevivência. Auto-intitulados “Capitães da Areia”, são temidos pelas classes mais abastadas de Salvador — recorrente alvo de operações criminosas organizadas pelo grupo dos meninos — e perseguidos pelas autoridades locais com o mesmo afinco dedicado aos maiores delinquentes da cidade.

Ao longo da narrativa, é explícita e realçada pelo autor a circunstância de extrema vulnerabilidade — socioeconômica, psicológica e emocional — em que as personagens se encontram, condição agravada ainda mais em razão de sua idade pueril. Esse cenário, por sua vez, acaba implicando a exclusão quase completa dos meninos do trapiche de qualquer convívio social e acesso às instituições formais do Estado (como a Justiça, a educação e a assistência social) [9], de tal forma que não lhes resta outra alternativa para a própria sobrevivência a não ser o cometimento de pequenos delitos, orquestrados e executados em conjunto através da agremiação dos jovens em torno de “uma lei e uma moral” [10]. Dessa forma, verifica-se o estabelecimento de uma espécie de “pacto social” entre os associados, cujas regras devem ser veementemente seguidas, sob pena de expulsão dos grupo:

“Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo” [11]

Esse ordenamento de regras pré-estabelecidas pelos meninos não apenas garantia a eficiência de suas operações e a sua boa reputação para fazer negócios [12], mas também a organização interna e o senso de lealdade do grupo — o que é evidenciado quando da menção de um grupo rival de meninos abandonados, muito menor e “muito mais sem ordem” que o dos protagonistas [13]. Todavia, não são raros os momentos na narrativa em que o respeito ao código dos Capitães da Areia é posto à prova em detrimento de oportunidades individuais dos membros. Duas passagens marcantes nesse sentido são quando Professor — desenhista, ladrão de livros e único letrado do grupo — recebe o convite de um mecenas para estudar arte e tornar-se pintor, e na vez em que Sem-Pernas — menino manco que se vale do defeito físico para ser acolhido em casas de ricos que depois serão assaltadas — vê-se no dilema sobre assaltar ou não a casa de Dona Ester, que o acolheu e lhe cuidou com o carinho e amor da mãe que nunca teve. No entanto, em nenhuma das ocasiões ocorre, de fato, traição por parte dos meninos, muito em função do papel realçado da ética que se verifica em meio às regras internas do grupo. Nesse sentido, verificamos uma aproximação do ordenamento fictício a um aspecto do direito de Pasárgada identificado por Boaventura, qual seja, a tendência de flexibilidade quanto ao formalismo e rigidez quanto à ética, operando-se a partir de uma lógica inversa à verificada no direito das sociedades capitalistas modernas [14].

Ressalta-se que não apenas esse aspecto da forte vinculatividade interna da lei dos Capitães da Areia a aproxima a um caso de pluralismo jurídico, mas também o seu antagonismo manente em relação ao direito posto estatal. Como um exemplo, podemos lembrar o capítulo em que Almiro, um dos membros dos Capitães, contrai varíola — ou, como chamam, “alastrim”, a versão atenuada da doença — durante o surto epidemiológico da doença em Salvador. De acordo com a norma do Estado, os cidadãos eram obrigados “a denunciarem à saúde pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos” [15], de onde raramente retornavam com vida. Contudo, um forte dilema se colocou entre o respeito à “lei do asfalto” e à lei interna do trapiche, na medida em que o pertencimento de Almiro ao grupo lhe garantia o direito à proteção dos demais, muito embora o possível contágio da peste colocasse a saúde dos outros meninos em perigo. Na ocasião, a decisão de Pedro Bala, líder do grupo, foi final, impondo sua autoridade sobre a divergência do grupo de maneira a garantir o acolhimento do colega enfermo e não o entregar às autoridades.

Aliás, o papel quase jurisdicional de resolução de conflitos sob o ordenamento do grupo recai a todo o momento sobre a figura do chefe, Pedro Bala, que “pela força e agilidade e coragem” [16] conquistara sua posição, e sem o qual “não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia” [17] — nesse sentido, um caso que se destaca, além do conflito de Almiro, é a chegada de Dora, a primeira menina entre os Capitães de Areia, que suscita o questionamento sobre eventual direito dos garotos de se apoderar de seu corpo. Destaca-se que o fenômeno do pluralismo jurídico, ante a ausência do Estado enquanto ente normativo e fiscalizatório, depende essencialmente de uma figura que exerça essas competências no âmbito do direito paralelo. Assim, no direito de Pasárgada, Boaventura identifica a Associação dos Moradores — sociedade criada com o objetivo de “organizar a participação, autônoma e coletiva, dos habitantes de Pasárgada no melhoramento, físico e cívico, da comunidade” [18] — como incumbida desse papel (somente não reivindicando a jurisdição criminal); em Capitães da Areia, tais prerrogativas não cabem a outro a não ser o líder, que, assim como em Pasárgada, vale-se do discurso argumentativo (retórica) como principal componente estrutural do direito vigente, dominando os processos e mecanismos de prevenção e resolução de litígios existentes [19].

Não obstante os paralelos já destacados entre o pluralismo jurídico identificado pelo jurista português e o ora proposto através da leitura da obra de Jorge Amado, nada chama mais atenção do que a conjuntura socioeconômica comum que desencadeou o fenômeno em Pasárgada e no trapiche. Nesse sentido, Boaventura apresenta o direito de Pasárgada como um “sistema jurídico subalterno, criado pelas classes populares para resistirem ou se adaptarem à dominação de classe”, em contrapartida ao “sistema jurídico dominante, criado pelas classes dominantes para assegurar a reprodução de seus interesses” [20]. Ora, ao longo de toda a narrativa de Capitães da Areia pode-se perceber que esse mesmo caráter dualista permeia fortemente o conflito que move o romance, notadamente, a antítese “pobres contra ricos, fracos contra fortes, pequenos marginais contra a sociedade opressora” [21]. Dessa forma, é possível identificar em ambos microcosmos um denominador comum atrelado à raiz do fenômeno jurídico-pluralista urbano, qual seja, um contexto de uma sociedade excludente marcada por uma profunda desigualdade social, cujo ordenamento jurídico oficial, em vez de oferecer amparo e oportunidades à população mais vulnerabilizada, acaba por agravar ainda mais as discrepâncias socioeconômicas — de tal sorte que não lhes resta outra alternativa a não ser recorrer à auto-organização apartada do Estado [22].

NOTAS E REFERÊNCIAS:

[1] ARISTÓTELES. Physica, Livro II, 199a 8–19, apud KNOLL, Victor. Imitação e manifestação. Discurso, São Paulo, n. 42, 2012, p. 31. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/69227>

[2] A utilização dos termos “dogmática” e “zetética” jurídicas deu-se tendo em vista a contribuição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação — 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: a construção e a reprodução do direito em Pasárgada in O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014, pp. 90–364. Versão em português da tese de doutorado do autor na Universidade de Yale, publicada originalmente em 1974, no idioma inglês, com título Law against law: legal reasoning in Pasárgada Law.

Ressalta-se, desde já, que não se pretende esmiuçar demais todos os argumentos do autor, até por falta de espaço. Assim, não é o escopo deste artigo fazer uma reconstrução de todo o capítulo, mas utilizar algumas de suas ideias principais e ilustrá-las a partir da obra literária em questão.

[4] Ibid., p. 342.

[5] RODRIGUES, Taísa Regina; DIAS, Eini Rovena. Direito dos Oprimidos: sociologia crítica do direito, parte 1, de Boaventura Sousa Santos. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, 2015, p. 426. Disponível em:
<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/16546>

[6] Metodologia socioantropológica da observação participante, cf. RODRIGUES et al., 2015, p. 426.

[7] SANTOS, 2014, op. cit., p. 90.

[8] HATOUM, Milton. Posfácio: o carrossel das crianças in AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 267. Disponível em:
<http://www.miltonhatoum.com.br/do-autor/ensaios-criticas/capitaes-de-areia-posfacio>

[9] Únicas exceções são as personagens padre José Pedro, mãe de santo Don’Aninha, doqueiro João de Adão e capoeirista Querido de Deus, as quais, apesar de não pertencerem formalmente ao grupo das crianças, ainda estabelecem um convívio saudável com os garotos.

[10] AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 189.

[11] Ibid., p. 126.

[12] “Negócios” no sentido de operações para as quais o grupo de meninos é contratado. Ressalta-se que nem todos os furtos narrados são realizados e planejados por conta própria, havendo muitas situações em que os serviços dos Capitães da Areia são contratados por terceiros em troca de algum pagamento.

[13] AMADO, 2009, op. cit., p. 185.

[14] SANTOS, 2014, op. cit., pp. 124–126.

[15] AMADO, 2009, op. cit., p. 146.

[16] Ibid., p. 198.

[17] Ibid., p. 185.

[18] SANTOS, 2014, op. cit., pp. 152.

[19] Ibid., p. 102.

[20] Ibid., p. 94.

[21] HATOUM, 2009, p. 266.

[22] A título de conclusão deste comentário, é necessário ressalvar, no entanto, que o direito de Pasárgada identificado por Boaventura de Sousa Santos é muito mais complexo do que o conjunto de regras que se pode depreender da leitura do romance de Jorge Amado. Isto pois, como demonstra o sociólogo do direito português, o ordenamento jurídico paralelo de Pasárgada envolve muitas e diversificadas demandas, pertencentes às mais diversas áreas do direito civil, uma população grande (estimada em dezenas de milhares de habitantes), regras de formalismo acerca das etapas de resolução dos conflitos, etc. Assim, do ponto de vista científico, não há que se fazer comparações aprofundadas e desproporcionais entre esse sistema e a “lei dos Capitães da Areia”, que, além de fictícia, é bastante simplificada e limitada, dado o próprio escopo do objeto sobre o qual suas regras pretendem debruçar.

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.