teoria crítica racial, Escola sem Partido e reacionarismo

Por André Cozer dos Santos

Apesar de o título deste artigo sugerir que se falará sobre a Teoria Crítica Racial (Critical Race Theory), não o faremos. Pelo contrário, trataremos sobre o espantalho criado pelos Republicanos nos Estados Unidos da América e que foi denominado de teoria crítica racial (tcr; utilizarei o nome com iniciais minúsculas para podermos separar o espantalho republicano do movimento acadêmico). Também não falaremos de Paulo Freire, de Bell Hooks ou de qualquer aspecto da Pedagogia Crítica. Tomaremos o mesmo expediente que será utilizado para a tcr, ou seja, trataremos do espantalho criado pelo Escola sem Partido e veiculado, principalmente, através de uma visão distorcida da realidade da educação brasileira.

1. teoria crítica racial

Em setembro de 2020, a administração Trump instruiu agências federais estadunidenses a encerrar quaisquer treinamentos que tratassem de tópicos como “privilégio branco” ou “teoria crítica racial” [1]. No memorando lia-se que: “todas as agências são direcionadas a começar a identificar todos os contratos ou gastos de outras agências relacionados com qualquer treinamento sobre ‘teoria crítica racial’, ‘privilégio branco’, ou qualquer treinamento ou propaganda que pretenda ensinar ou sugerir ambos (1) que o Estados Unidos é inerentemente racista ou um país maligno ou (2) que qualquer raça ou etnia é inerentemente racista ou má” (tradução livre) [2].

Assim que foi eleito, Biden revogou tal memorando [3]. Contudo, a “caça-às-bruxas” dos republicanos à teoria crítica racial não se encerrou. Até o momento, pelo menos 5 estados, todos governados por republicanos, já aprovaram e promulgaram leis banindo a teoria crítica racial de escolas públicas, juntamente com qualquer outra discussão sobre racismo. Ademais, ao menos mais 17 estados possuem leis propostas no mesmo sentido aguardando aprovação legislativa [4].

Apesar de utilizarem o nome “teoria crítica racial”, os Republicanos, ao atacarem essas supostas práticas ideológicas, não estão atacando diretamente o movimento acadêmico Critical Race Theory. teoria crítica racial, para eles, muitas vezes é confundido com “Black Lives Matter”, “Social Justice”, “Identity”, ou “Diversity”. Em suma, tcr é um termo vago que pode ser utilizado para aglutinar todos os referenciais que republicanos e conservadores em geral se opõem [5]. Não é necessário, para a engenharia social republicana, a criação de um espelho realmente representativo do que seria a Teoria Crítica Racial. Eles apenas precisaram criar um espantalho que fosse capaz de criar engajamento nos setores conservadores da sociedade estadunidense. Por consequência, essa tática não tem compromisso com a realidade dos fatos, ela apenas busca veicular uma interpretação hiperbolizada e altamente politizada de eventos ou palestras que sirvam para sustentar o mito inicial.

Benjamin Wallace-Wells explica, em reportagem veiculada no The New Yorker [6], como o nome desse movimento formado na década de 90 por acadêmicos de Direito (Critical Race Theory) se tornou a nova face da luta reacionária conservadora dos republicanos. Ele esclarece que, com a pandemia e o trabalho remoto, ficou mais fácil gravar e compartilhar seminários antirracistas. Com esse cenário, Christopher F. Rufo viu uma oportunidade política ao receber “evidências” de um treinamento anti-preconceito (anti-bias). Suas primeiras “descobertas” foram publicadas sob o título de “Sob a bandeira do ‘antirracismo’, o Escritório de Direitos Civis De Seattle está explicitamente endossando princípios segregacionistas, culpa grupal, e essencialismo racial — conceitos repulsivos que deveriam ter sido deixados para trás a séculos” (tradução livre) [7]. Com essa publicação, ele foi capaz de captar mais “evidências” e estudar quais eram as raízes de tais seminários e treinamentos. Ao se deparar com o termo “Teoria Crítica Racial”, Rufo viu nele o vilão perfeito. “Suas conotações são todas negativas para a maioria da classe média americana, incluindo minorias raciais, que veem o mundo como ‘criativo’ mais que ‘crítico’, ‘individual’ mais que ‘racial’, ‘prático’ mais que teórico’. Tomadas em conjunto, a frase ‘teoria crítica racial’ possui conotação hostil, acadêmica, divisiva, race-obsessed (obcecada com a raça), envenenadora, elitista, anti-Americana” (tradução livre) [8], afirmou Rufo em entrevista. Foi após uma aparição de Rufo que o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tomou as providências para assinar o memorando citado no começo do presente artigo.

Portanto, o evento que eclodiu com o memorando de setembro de 2020 não veio do nada, e muito menos indica que irá arrefecer suas forças tão rapidamente — como indicam as leis anti-teoria-crítica-racial que vêm sendo aprovadas em cada vez mais estados dos Estados Unidos. Essa tática republicana possui muitos pontos em comum com o movimento “Escola sem Partido” aqui do Brasil. Mas para explicitar melhor essas semelhanças, primeiro devemos, assim como fizemos com a teoria crítica racial, explicar o que seria esse movimento.

2. Escola Sem Partido

Apesar de sabermos que a ideia do “Escola sem Partido” não é única e não há homogeneidade entre aqueles que “militam” por essa “causa”, tomaremos como ponto basilar para a caracterização do movimento as informações contidas no próprio site oficial do movimento [9].

O Escola sem Partido é “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” [10]. Essa definição mostra pelo menos duas coisas: quem compõe e quais as preocupações dos membros desse grupo. O mais relevante dessas duas características é a expressão indeterminada “contaminação político-ideológica”. O próprio texto de apresentação continua a citar esse objetivo, mas o mais próximo que se chega de uma definição dele é quando eles “identificam” o problema da educação brasileira, a saber: “a instrumentalização do ensino para fins ideológicos, políticos e partidários” [11]. Seus objetivos são abrangentes e indefinidos, sempre utilizando-se de termos vagos como “ideologia”, “contaminação ideológica” e “doutrinação ideológica”.

Nas perguntas e respostas do site, podemos encontrar, como resposta à pergunta “Mas o que há de errado em querer despertar a consciência crítica dos alunos?”, o seguinte comentário: “não haveria nada de errado, se esse ‘despertar da consciência crítica’ não consistisse apenas e tão somente em martelar ideias de esquerda na cabeça dos estudantes” [12]. Desse trecho, podemos perceber que a “doutrinação ideológica” supostamente exercida nas escolas seria instrumentalizada por meio do “despertar da consciência crítica” com o objetivo de “martelar” ideias de esquerda nos estudantes. Sendo os alvos das “ideias de esquerda” seriam: “a civilização ocidental, o cristianismo, os valores cristãos, a Igreja Católica, a ‘burguesia’, a família tradicional, a propriedade privada, o capitalismo, o livre-mercado, o agronegócio, o regime militar, os Estados Unidos, etc” [13]. Em geral, todas palavras que fazem parte do léxico da classe média brasileira conservadora.

3. Congruências

Apesar de serem movimentos separados tanto no tempo quanto no espaço, o Escola sem Partido e o ataque à teoria crítica racial podem ser identificados dentro de uma categoria: o reacionarismo. Entendemos o reacionarismo como qualquer reação à mudanças, reais ou fictícias, em relação ao status quo ideal. No caso dos “movimentos” analisados, as mudanças são ambas reais e fictícias:

Reais no sentido de que tanto na sociedade brasileira quanto na sociedade estadunidense houve mudanças em relação às antigas formas de opressão e de estruturas de poder, tais como racial, LGBTQIA+fóbica, de gênero etc. É fato que pautas caras ao movimento negro, feminista, LGBTQI+ etc. estão cada vez mais sob holofotes e a sociedade não mais as ignora no debate público. Contudo, apesar das mudanças significativas em termos de visibilidade, o mesmo não pode ser dito dos indicadores materiais dessas opressões. Nunca tantos negros estiveram atrás das grades, e homicídios contra pessoas LGBTQIA+ não tiveram recuos significativos.

Fictícias porque, apesar da maior visibilidade, as estruturas de poder que sustentam essas opressões ainda mantêm sua rigidez. Mas tanto a visibilidade, como pequenos avanços, como cotas raciais e mais mulheres no mercado de trabalho ainda majoritariamente masculino, criam riscos, mesmo que longínquos, a essas estruturas de poder. Em função desses riscos, surgem respostas, reacionárias como definimos. O principal vetor dessas ebulições reacionárias são os bolsões conservadores da classe média, tanto brasileira quanto estadunidense, que encontram organização lexical em movimentos como Escola sem Partido e a luta contra a teoria crítica racial. Tanto é assim que esses movimentos utilizam-se de palavras, termos e ideias caros a esses grupos, facilitando a adesão dos mesmos a eles.

Escola sem Partido e o ataque à teoria crítica racial são apenas dois exemplos que podem ser identificados como reacionarismo, mas certamente há muitos outros. E, certamente, eles não vão parar de surgir, haja vista que as pautas anti-opressões cada vez mais ganham adeptos, mas, devido ao grau de rigidez das estruturas de poder a que esses grupos se opõem, ganham também grandes inimigos e detratores.

Referências:

[1] SCHWARTZ, Matthew S.. Trump Tells Agencies To End Trainings On ‘White Privilege’ And ‘Critical Race Theory’. 2020. Disponível em: https://www.npr.org/2020/09/05/910053496/trump-tells-agencies-to-end-trainings-on-white-privilege-and-critical-race-theor. Acesso em: 23 jul. 2021.

[2] “All agencies are directed to begin to identify all contracts or other agency spending related to any training on ‘critical race theory,’ ‘white privilege,’ or any other training or propaganda effort that teaches or suggests either (1) that the United States is an inherently racist or evil country or (2) that any race or ethnicity is inherently racist or evil”, in VOUGHT, Russel. (2020 September 4) Training in the Federal Government [Memorandum]. Office of Management and Budget. https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2020/09/M-20-34.pdf?fbclid=IwAR1r7Ej2V0gZ8pNhIEjLtHDDNlfeYvBkzEgUfbrU3cXfot7RP2XKPwnCDe4

[3] ASSOCIATED PRESS. Joe Biden revokes Donald Trump’s order banning ‘critical race theory’ and other diversity training which ex-president called ‘un-American’. 2021. Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/news/article-9173703/Biden-revokes-Trump-order-banning-diversity-training.html. Acesso em: 23 jul. 2021.

[4] ADAMS, Char; SMITH, Allan; TAMBE, Aadit. Map: See which states have passed critical race theory bills. 2021. Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/nbcblk/map-see-which-states-have-passed-critical-race-theory-bills-n1271215. Acesso em: 23 jul. 2021.

[5] TENSLEY, Brandon. The engineered conservative panic over critical race theory, explained. 2021. Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/07/08/politics/critical-race-theory-panic-race-deconstructed-newsletter/index.html. Acesso em: 23 jul. 2021.

[6] WALLACE-WELLS, Benjamin. How a Conservative Activist Invented the Conflict Over Critical Race Theory: to christopher rufo, a term for a school of legal scholarship looked like the perfect weapon.. To Christopher Rufo, a term for a school of legal scholarship looked like the perfect weapon.. 2021. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/annals-of-inquiry/how-a-conservative-activist-invented-the-conflict-over-critical-race-theory. Acesso em: 23 jul. 2021.

[7] “Under the banner of ‘antiracism,’ Seattle’s Office of Civil Rights is now explicitly endorsing principles of segregationism, group-based guilt, and race essentialism — ugly concepts that should have been left behind a century ago”, in WALLACE-WELLS. Op. cit.

[8] “Its connotations are all negative to most middle-class Americans, including racial minorities, who see the world as ‘creative’ rather than ‘critical,’ ‘individual’ rather than ‘racial,’ ‘practical’ rather than ‘theoretical.’ Strung together, the phrase ‘critical race theory’ connotes hostile, academic, divisive, race-obsessed, poisonous, elitist, anti-American.”, in WALLACE-WELLS. Op. cit.

[9] ESCOLA SEM PARTIDO. Escola sem Partido. Disponível em: http://escolasempartido.org/. Acesso em: 23 jul. 2021.

[10] ESCOLA SEM PARTIDO. Quem Somos. Disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 23 jul. 2021.

[11] ESCOLA SEM PARTIDO. Quem Somos. Disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 23 jul. 2021.

[12] ESCOLA SEM PARTIDO. Perguntas e respostas. Disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 23 jul. 2021.

[13] ESCOLA SEM PARTIDO. Perguntas e respostas. Disponível em: http://escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 23 jul. 2021.

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.