Pesquisa coletiva na graduação: limites e possibilidades

Por Beatriz Ferreira de Paula

Para muitos estudantes, é na graduação que terão o primeiro contato com a produção científica. A pesquisa, nesses termos, é um dos três pilares da universidade — ensino, pesquisa e extensão. Seja por meio de iniciações científicas ou da participação em grupos de pesquisa, por exemplo, há diversos caminhos a partir dos quais os estudantes podem ter essa experiência. Essas possibilidades, no entanto, nem sempre estão bem evidentes e muitas vezes acabam sendo pouco acessíveis à maior parte dos estudantes. Esse texto, então, — longe de ser um manual ou qualquer coisa nesse sentido — pretende compartilhar um pouco do que tem sido a minha experiência com pesquisa coletiva na graduação e conta com a gentil contribuição de alguns colegas[1].

Para começar, acho importante comentar que os diálogos que possibilitaram esse texto me levam a pensar que não há maneira simples de responder o que é ou como realizar uma pesquisa coletiva. Não existe um modelo fixo ou um manual pronto: diferentes grupos com diferentes pesquisas pensarão modelos que sejam mais adequados aos seus objetivos e que possam atender melhor às suas necessidades. No entanto, sobre o porquê de optar por esse modelo, fico tentada a responder: porque é legal. A graduação, especialmente, a graduação em direito, é bem individualista e, assim, deveríamos aproveitar quando a academia nos proporciona espaços coletivos de criação. Mas, essa resposta talvez — provavelmente — seja insuficiente, por isso procurarei elaborar um pouco mais a seguir.

Para pensar sobre pesquisa coletiva, esse texto se debruça sobre duas experiências desenvolvidas no âmbito do PET (Programa de Educação Tutorial) Sociologia Jurídica. Seu objetivo é refletir sobre quais seriam os limites e possibilidades desse modelo a partir da experiência dos estudantes envolvidos. A escolha de falar sobre a pesquisa coletiva no PET deve-se a dois motivos. Em primeiro lugar, não são muitos os espaços na universidade que propiciam e incentivam esse tipo de experiência.

Para além do PET, um outro espaço no qual a pesquisa coletiva também é possível na FDUSP é o Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA) — inclusive, foi uma de suas postagens[2] recentes no facebook sobre como funciona a pesquisa coletiva que me inspirou a começar esse texto. Em 2019, o GPEIA realizou uma importante pesquisa sobre currículo oculto relacionado às assimetrias de gênero da Faculdade de Direito da USP. Ela foi desenvolvida coletivamente e resultou em um livro chamado Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?[3]. Atualmente, o grupo está trabalhando em um projeto sobre as relações étnico-racias na faculdade, observando o marco da política de cotas PPI em 2018. A pesquisa coletiva é apontada pela entidade como uma possibilidade de construção por meio do diálogo e de esforços coletivos[4].

O segundo motivo é o fato de o PET ser o local que conheço e onde pesquiso; assim, nada mais justo que escrever sobre ele.

O PET é um programa do Ministério da Educação que busca promover os três pilares da educação superior. A proposta é que seja um espaço de autonomia acadêmica, em que os estudantes tenham liberdade para pensar sobre o que e como querem estudar. Há, no programa, a demanda de dedicação exclusiva, o que possibilita ao aluno estar disponível integralmente à pesquisa e às demais atividades acadêmicas.

Retornando às experiências sobre a pesquisa coletiva, em 2020, o PET entrevistou[5] as ex-petianas Lígia Fiani, Marcella Puppio e Letícia Carvalho, sobre a publicação de um artigo intitulado Um teto todo seu: A disputa pelos imóveis vazios de São Paulo e a luta pelo direito à moradia[6] publicado na Revista Quatro Cinco Um — resultado de uma pesquisa produzida em conjunto, no âmbito de suas iniciações científicas. Na entrevista, elas falam sobre as inquietações que as levaram à pesquisa e sobre como foi desenvolver esse projeto coletivamente.

A pesquisa buscava entender a dinâmica da aplicação do princípio da função social da propriedade na cidade de São Paulo. Sobre isso, as pesquisadoras mencionam que “[de] um lado a prefeitura, de outro lado, os proprietários. É formada uma arena em que estão em jogo a função social da propriedade, o direito à moradia, bem-estar coletivo versus direito de propriedade e os limites da atuação da prefeitura. O embate é no plano dos argumentos”[7]. Foi justamente sobre essa disputa argumentativa entre os atores processuais que a pesquisa se debruçou. Foi escolhida uma metodologia de pesquisa empírica que permitia a análise dos dados dos processos de maneira qualitativa e quantitativa. A opção pela pesquisa empírica estava ligada à ideia de desenvolvê-la de maneira coletiva, porque o esforço conjunto possibilitou o levantamento de um grande volume de dados.

Uma questão interessante a ser mencionada é a burocracia que envolve um projeto coletivo. Os alunos da USP talvez já estejam familiarizados com o Atena, mas para aqueles que não o conhecem, é o sistema de Iniciações Científicas da Universidade. Tal sistema não aceita o cadastramento de projetos de iniciação científica coletiva, mas apenas de alunos individualmente.

Mas como fazer uma iniciação científica individual e ainda assim desenvolver uma pesquisa coletiva? Essa é uma pergunta muito importante: Lígia, Marcella e Letícia encontraram uma maneira de respondê-la e, como será visto num segundo momento, a minha geração de petianos encontrou uma outra forma.

As ex-petianas comentaram que essa limitação burocrática da faculdade foi um fator determinante na elaboração da pesquisa porque era necessário que cada uma delas entregasse uma pesquisa individual. Dessa forma, foram estudados os mesmos processos, mas cada pesquisadora tinha uma pergunta de pesquisa específica relacionada às estratégias argumentativas utilizadas pelos diferentes atores em cada uma das peças do litígio.

A segunda experiência refere-se àquela que minha geração de petianos tem desenvolvido atualmente. Nesse ponto, é necessário comentar que se trata de um projeto em andamento, então as questões, conclusões e proposições levantadas por aqui são parciais e também fazem parte do processo: estamos na etapa de entrega de nossos projetos. Já pudemos conversar e elaborar um pouco sobre o que vem sendo desenvolvido até aqui — e é a partir disso que estou me propondo a escrever.

Frente à questão das limitações burocráticas do sistema de iniciações científicas, optamos por um macro-tema, um tema guarda-chuva, a partir do qual cada um poderia desenvolver seu trabalho da maneira que mais se interessasse. Nossos gostos, interesses e curiosidades nos levaram a um tema em comum: decolonialidade. A partir daí, por orientação do nosso tutor, começamos uma pesquisa exploratória.

A pesquisa exploratória foi o momento em que houve maior desenvolvimento desse trabalho coletivo. Formamos um grupo de estudos, com reunião às sextas para trocar ideias sobre os textos que combinamos ler. Partimos quase do zero, não sabíamos quais autores eram referência na área nem quais textos eram importantes. Isso demandou uma ampla pesquisa, comparações e, de fato, leituras — um trabalho que teria sido difícil de realizar sozinho. Coletivamente, decidimos quais textos gostaríamos de ler, quais os prazos pensávamos serem viáveis e começamos a trabalhar.

Integrar um grupo nos fornecia uma percepção de compromisso mútuo e também a possibilidade de amparar uns aos outros: era um processo cansativo, mas não deixávamos que se tornasse desestimulante. Discutimos, posteriormente, que a presença de um professor nas reuniões, que pudesse indicar bibliografia e conduzir as discussões, talvez nos tivesse poupado tempo — e, provavelmente, teria conduzido nossas pesquisas por outros caminhos. Porém, foi muito positivo poder criar um espaço horizontal, em que todos se sentissem à vontade para compartilhar dúvidas, impressões e dificuldades. Trabalhar em um grupo pequeno, formado apenas por nós, alunos da graduação, nos deu liberdade e autonomia para refletir sobre o assunto e nos organizar da maneira que achávamos melhor, adaptando e rearranjando as coisas ao longo do processo. Outro ponto importante foi o apoio e a possibilidade de dividir as angústias e dúvidas que fazem parte da pesquisa científica.

A questão do apoio também foi ressaltada na entrevista. O meio acadêmico, sobretudo o do direito, demanda muito do estudante, criando um ambiente individualista e de constante competição. Nesse cenário, é muito positiva a possibilidade de criar um espaço colaborativo em que as decisões possam ser tomadas coletivamente e o tempo, as afinidades e o ritmo de cada pessoa envolvida possam ser respeitados.

Uma reflexão que surgiu desses diálogos coletivos foi que o trabalho em grupo reforça a ideia de que todo o conhecimento é coletivo. Paulo Freire tem uma frase bastante famosa nesse sentido: “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo. Os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo”[8]. Numa outra frase[9], nem tão famosa, John Lennon teria dito que ele e Paul McCartney tinham um trato: as músicas sempre seriam apresentadas como composição dos dois, mesmo quando apenas um tivesse trabalhado nela. Isso porque eles entendiam que não se produz nada sozinho; tudo que fazemos, construímos e criamos é coletivo e compartilhado.

Ainda sobre essa referência dos saberes compartilhados, bell hooks, professora e escritora negra estadunidense, escreve a respeito de uma educação transgressora que, reconhecendo as intersecções de raça, classe e gênero, é capaz de construir espaços democráticos, onde todos os alunos tenham um papel ativo na construção do conhecimento. Retomando a obra de Paulo Freire — esse, sim, mais famoso que Lennon e McCartney -, hooks nos relembra que “a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos que trabalhar”[10]. Uma das potencialidades da pesquisa coletiva estaria, então, em subverter a lógica acadêmica para formar esses espaços democráticos e de construção autônoma de conhecimento.

Notas e referências:

[1] Agradecimentos aos meus colegas do PET Sociologia Jurídica, em especial a Alice Maria, Heloísa Salles, Julia Rodrigues e Thiago Horta; e também a André Cozer por compartilhar sobre a sua experiência no GPEIA

[2] A postagem do GPEIA sobre pesquisa coletiva está disponível no link: https://www.facebook.com/GPEIA.FDUSP/photos/pcb.3729544627156751/3729544200490127

[3] CEREZETTI, Sheila Christina Neder e outros. Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto? São Paulo: Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019.

[4] CEREZETTI, Sheila Christina Neder e outros. Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto? São Paulo: Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019. p. 9

[5] É possível assistir à entrevista no canal do PET Sociologia Jurídica no Youtube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=azlDoIM058M&t=1029s

[6] Artigo disponível no link: https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/a/um-teto-todo-seu

[7] BARIANI, Lígia Fiani; PUPPIO, Marcella Gomes; SILVA, Letícia Carvalho. Um teto todo seu: A disputa pelos imóveis vazios de São Paulo e a luta pelo direito à moradia. Revista Quatro Cinco Um, 2020. Disponível em: <https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/a/um-teto-todo-seu> Acesso em: 22 de maio de 2021

[8] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Editora Paz e Terra. 9ª ed. Rio de Janeiro, 1981, p. 79

[9] Sobre esse acordo, ver: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Parceria_Lennon_e_McCartney

[10] HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. WMF Martins Fontes. 2ª ed. 2017. p. 26

--

--

PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.