O que e como manifestar: o exercício da democracia sob a ameaça do Direito Penal e o uso das prisões cautelares

Por Beatriz Ferreira de Paula

No dia 28 de julho de 2021, Paulo Galo, como é conhecido o líder do movimento Entregadores Antifascistas, foi preso temporariamente por ter ateado fogo à estátua do bandeirante Borba Gato, em Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo, depois de se apresentar espontaneamente à delegacia para prestar depoimento.

Poucos dias antes, um grupo de jovens da periferia de São Paulo — Revolução Periférica — empilharam pneus velhos e jogaram gasolina na estátua que, logo depois, foi engolida pelas chamas. Borba Gato, o bandeirante retratado na estátua, é um exemplo de como o Brasil perverte a história transformando genocidas em heróis — numa manobra que deixaria até George Orwell incrédulo. O mito criado em torno dos bandeirantes paulistas por muito tempo monopolizou a memória histórica hegemônica, deixando para o Buraco da Memória[1] o fato de que a expansão histórica da capital paulista se deu, na verdade, por meio da captura, escravização e extermínio de populações indígenas e quilombolas.

A deputada estadual Erica Malunguinho — que em 2020 apresentou na ALESP o PL 404/2020 que proíbe homenagens a escravocratas e a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista — se manifestou sobre o acontecimento, classificando-o como “uma resposta da sociedade a uma indignação coletiva”[2].

A prisão de Paulo e Géssica representa uma grave violação do Estado Democrático de Direito, que, no entanto, não é uma excepcionalidade. É um exemplo de como o aparato punitivo do Estado é utilizado como forma de controle social, determinando quais pautas podem ou não ser demandadas; e como, nesse contexto, o instituto da prisão cautelar é utilizado como um mecanismo de antecipação da punição.

O Direito Penal brasileiro é orientado pelo princípio, constitucionalmente garantido, da presunção da inocência[3]. Aury Lopes Jr. menciona que o nível de observância (eficácia) deste princípio trata-se, em última análise, de um indicador da qualidade democrática de um sistema processual penal[4]. No entanto, a questão que surge é: como compatibilizar a presunção de inocência com a possibilidade de prisões cautelares? Essa questão ganha ainda mais relevância ao ter em mente o altíssimo custo — social, político e humano — imposto pelas prisões (em geral e não apenas cautelares), sobretudo em vista da ADI 347 — em que o STF reconheceu que o sistema carcerário brasileiro constitui um Estado de Coisa Inconstitucional. Prender uma pessoa hoje no Brasil significa uma decisão deliberada de inseri-la num sistema reconhecidamente violador de direitos humanos.

As prisões cautelares são medidas que estão previstas no ordenamento em situações bastante restritas. Essas prisões têm caráter instrumental, de tutela do processo no sentido de garantir o exercício do poder de punir. Para que seja decretada prisão cautelar — seja ela temporária ou preventiva — tem-se como requisito a fumus commissi delicti, isto é, a probabilidade de ocorrência de um delito, como prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Além disso, a prisão cautelar tem como fundamento a periculum libertatis, ideia de que a liberdade da pessoa em questão seria um fator de perigo — que causaria uma frustração da função punitiva, seja por fuga ou destruição da prova, por exemplo. Ambos os elementos são indispensáveis para a decretação e manutenção da prisão (LOPES JR., 2020; p. 918), de forma que, na ausência de qualquer um deles, o imputado deve ser solto imediatamente.

Em referência a Ferrajoli, Lopes Jr. entende que a prisão cautelar, na verdade, se configura como uma pena processual “em que primeiro se castiga e depois se processa, atuando com caráter de prevenção geral e especial e retribuição.” (LOPES JR., 2020; p. 927) Também Junya Rodrigues Barletta, aponta que o instituto da prisão provisória configura uma das manifestações mais violentas desse poder de punir estatal, ressaltando que “na prática, a prisão provisória assume, por excelência o papel de pena, à revelia do direito e de sua construção dogmática, como principal instrumento de política criminal no Brasil, de claro cariz eficientista.”[5]. A autora defende, assim, que a prisão provisória é um meio de punição mais severo do que a pena decretada no final do processo, já que seria aplicada a indivíduos que ostentam o status jurídico de inocentes.

Ou seja, apesar do malabarismo doutrinário para conferir uma leitura constitucional à possibilidade de se prender uma pessoa presumidamente inocente, no mundo real o instituto da prisão cautelar se recusa a se adequar a qualquer perspectiva supostamente garantista. A crítica que Zaffaroni apresenta à dogmática jurídico-penal e a sua racionalidade própria evidencia essa crise:

“El dolor y la muerte que siembran nuestros sistemas penales están tan perdidos que el discurso jurídico-penal no puede ocultar su desbaratamiento, valién dose de su vetusto arsenal de racionalizaciones reiterativas; nos hallamos frente a un discurso que se desarma al más leve roce con la realidad.”[6] [7]

Revela-se o que permanece como um lado obscuro — porém, intrínseco — do sistema penal, enquanto estrutura punitiva e de produção e manutenção de subalternidades. A crítica que aparece em Zaffaroni e em outros autores, a denúncia da violência e do extermínio voltados aos povos negros e indígenas e do patriarcalismo cis-hétero-normativo, dialogam na composição de um quadro do direito penal em que tais características não são aspectos acidentais, mas inerentes e necessários a sua operacionalidade.

Angela Davis, ao falar sobre a ativista Assata Shakur — colocada na lista dos terroristas mais procurados pelo FBI — denuncia a lógica que informa o que ela denomina Complexo Industrial Prisional:

“Agora, o ataque a Assata incorpora a lógica do próprio terrorismo de que falsamente a acusaram. O que poderiam esperar realizar, além de levar as novas gerações de ativistas a recuar por medo? O FBI, parece-me, tenta persuadir as pessoas que são netas da geração de Assata — minha também — a se afastar das lutas para colocar fim à violência policial, para desmantelar o complexo industrial prisional, para colocar fim à violência contra as mulheres, para colocar fim à ocupação da Palestina, para defender os direitos de imigrantes aqui e no exterior.” [8] (Grifo meu)

Me parece que a leitura que Davis faz sobre os ataques à Shakur pode — guardadas as devidas proporções — nos dar pistas sobre a prisão de Paulo Galo e de tantos outros ativistas brasileiros. No dia 28 de julho, Galo — que tem emprego e residência fixos — espontaneamente se apresentou à polícia. Fica evidente que não há de se falar em periculum libertatis, por que, então, a decretação da prisão temporária? Novamente o Direito Penal insistindo em se rebelar contra a dogmática que tenta impor qualquer controle ao que, na verdade, lhe é intrínseco.

Conforme comentado, não se trata de uma excepcionalidade. Outra prisão também muito denunciada foi a da liderança do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), Preta Ferreira, que, em 2019 foi presa acusada de extorsão e associação criminosa. A ativista conta que foi à delegacia prestar depoimento e, ao mesmo tempo, sua prisão foi decretada. Preta Ferreira ficou mais de 100 dias encarcerada na Penitenciária de Franco da Rocha, Região Metropolitana de São Paulo, e denuncia:

“A nossa detenção e essa perseguição toda ao movimento de moradia faz parte de uma ameaça, faz parte de um plano para acabar com os movimentos de moradia. Prendem as lideranças, amedrontam quem não tem moradia, e aí acaba”[9].

Nos dois casos, fica nítido não apenas a utilização política do instituto da prisão cautelar de forma a antecipar o exercício do poder de punir, como também o exercício pelo Estado de um outro poder: o de determinar quais são as pautas consideradas legítimas e como elas devem ser mobilizadas por parte dos ativistas — sob a ameaça constante do Direito Penal.

NOTAS:

[1] No livro “1984” de George Orwell, o Buraco da Memória é um dispositivo de censura, utilizado para apagar ou alterar fatos históricos e reescrevê-los conforme interesse dos que estavam no poder.

[2] Disponível em: https://ponte.org/fogo-no-borba-gato-e-uma-resposta-da-sociedade-a-uma-indignacao-coletiva-diz-erica-malunguinho/

[3] CF/88 art. 5º, inc. LVII — ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17ª ed., Saraiva Educação. São Paulo, 2020

[5] BARLETTA, Junya Rodrigues. A prisão provisória como medida de castigo e seus parâmetros de intolerabilidade à luz dos direitos humanos. Tese (doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmatica juridico-penal. EDIAR. Buenos Aires, 1998

[7] Em tradução livre: “A dor e a morte que semeiam nossos sistemas penais estão tão perdidos que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desmantelamento, se valem do seu antigo arsenal de realizações repetitivas; estamos diante de um discurso que se desarma ao mais leve toque da realidade”

[8] DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. 1ª ed. Boitempo. 2018

[9] SODRÉ, Lu. “Onde está a Justiça?”, diz Preta Ferreira, presa há mais de 70 dias sem provas: Em entrevista exclusiva, liderança do MSTC afirma que sua prisão é uma tentativa de criminalizar a luta por moradia. Brasil de Fato. São Paulo, 09 de setembro de 2019. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/09/09/onde-esta-a-justica-deste-pais-diz-preta-ferreira-presa-ha-72-dias-sem-provas> Acesso em: 15 de setembro de 2021

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.