O pensamento decolonial: aspectos introdutórios e relações possíveis com campo jurídico

por Júlia Rodrigues

América Invertida (1943). Joaquin Torres Garcia.

Apresentação

É possível pensar a América Latina por uma perspectiva propriamente latinoamericana? O debate quanto à viabilidade de teorias e práticas conscientemente autônomas, que levem em consideração aspectos característicos quanto à etnicidade, cultura e história da América, não é recente na região, mas nem por isto encontra-se obsoleto, pelo contrário: o interesse em investigar e pensar para e a partir de perspectivas locais tem se mostrado como pauta crescente, cujo desenvolvimento pode ser de grande pertinência no tratamento de problemas sistêmicos da região — heranças de um sistema colonial racista, oligárquico e eurocêntrico.

O pensamento decolonial (também chamado de “movimento” e “giro decolonial”), neste sentido, é corrente de pensamento iniciada no campo da história e que retoma a tradição crítica latinoamericana, acrescentando a ela a compreensão da Colonialidade como aspecto estruturante intrínseco à Modernidade: que começou e foi possível para a Europa apenas a partir do processo de colonização da América e escravidão de nativos afroamericanos. A produção descolonial, teórica e prática, expandiu-se, diante da hegemonia e crise neoliberal (décadas de 1980 e 1990), para outros campos das ciências humanas — como a sociologia, a linguística, a filosofia, a pedagogia e, mais recentemente, para o direito — compondo, assim, parte de um giro progressista vivenciado em todo o subcontinente nos anos 2000. O Giro Decolonial [1] (MALDONADO-TORRES, 2007), assim, caracteriza-se como uma virada epistemológica de complexa heterogeneidade de autores que propõem a radicalização dos argumentos dos estudos pós-coloniais ao somar a crítica à Modernidade — novidade que rompe com um desejo de ser moderno com cores locais.

O que se denomina hoje, majoritariamente, como “alternativa decolonial” foi movimento inicialmente proposto por intelectuais latinoamericanos [2] — Edgardo Lander, Arturo Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Fernando Coronil — que formaram, em ambiente universitário norte e latinoameticano, o grupo de estudos e debates Modernidade/Colonialidade [3], apoiado pela CLACSO. Trata-se de conjunto fortemente influenciado pelos estudos subalternos (Sumit Sarkar, Gayatri Spivak, Ranajit Guha, Edward Said), pela Teoria da Libertação (Enrique Dussel, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro) e, também, pela Teoria da Dependência (Aníbal Quijano, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso).

Partindo do pressuposto da Colonialidade como contrapartida fundamental da Modernidade nos países subdesenvolvidos, os decolonias se destacaram, sobretudo, pela diferenciação da Colonialidade do conceito de Colonialismo — estabelecendo o último como uma estrutura político-administrativa iniciada no séc. XVI e que se encerra com o fim do sistema colonial. Por outro lado, afirmam a Colonialidade como conjunto de formas de organização do mundo, iniciado no Colonialismo e mantido após o seu fim, configurando os modos pelos quais se estabelecem, na atualidade, a política global e local, a construção de conhecimento, as relações sociais e a própria identidade dos indivíduos: o que foi chamado, respectivamente, de colonialidade do poder (Quijano, 2000), do saber e do ser (Maldonado-Torres, 2008, p.147) [4].

A justificativa do giro é, sinteticamente, a permanência e reformulação da colonialidade como uma forma de dominação que subalterniza raça, gênero e classe por meio de categorias presentes na face obscura da Modernidade (eurocêntrica, capitalista e pretensiosamente universalista). O movimento se propõe, assim, a apresentar novidades com relação às teorias críticas já estabelecidas na categorização da realidade latinoamerica, como o marxismo, e debater e combater o colonialismo — na política, meio ambiente, economia, cultura e identidade — a partir da ruptura com o ciclo de colonialidade, que mantém grupos e povos distantes da emancipação social e sob a exploração do racismo, imperialismo e neocolonialismo. O Decolonial, assim, define-se como crítica e proposição (teoria e prática) que pressupõe, epistemologicamente, visibilizar práxis de resistências desenvolvidas pelos sujeitos de grupos sociais e fenômenos culturais que foram subalternizados, negados e reprimidos pela Modernidade/Colonialidade.

Pertinência de se pensar a descolonialidade hoje.

Para tratar da importância do pensamento decolonial na atualidade — pela pesquisa, crítica ou adesão — é necessário compreender que (i) não se trata de um bloco homogêneo de pesquisadores, havendo multiplicidade de linhas argumentativas quanto a, p.e., assimilação e uso de teorias modernas e pós-modernas europeias (marxismo e estudos culturais) e a restrição do termo “decolonialidade” à América Latina (“O termo poderia ser aplicado para abordagens relativas a África e Ásia?”); como também que (ii) a decolonialidade é proposta não como uma missão [5], mas sim como uma opção que se põe ao debate público para tratar questões a partir da particularidade das sociedades que foram colonizadas, para as quais os modelos universalistas (de racionalidade eurocêntrica) não apresentam soluções — o retorno às experiências do Sul Global procura estabelecer um pragmatismo epistemológico, promovendo saberes silenciados a repertórios possíveis na resolução de problemas presentes.

Nesse sentido, ao pensarmos, como um exemplo, a abordagem da questão étnica-racial nas Américas, em que o racismo tem complexidade diferenciada em relação à Europa, é explícito o modo como esta configura opressões cotidianas que, com frequência, resultam em morte (por descaso do Poder Público, por violação de direitos, por assassinatos). O pensamento decolonial, neste sentido, propõe desde sua formulação inicial a compreensão da categoria raça como a que possibilitou a expansão do modelo colonial — sobrepondo-a a classe, ainda que não ignore intersecções [6]. Para além desse caso, o movimento tem contribuído de modo bastante relevante na apresentação e consolidação de críticas radicais e profundas da visão ocidental-centrista, que na construção do pensamento se caracteriza pela ideia cartesiana da neutralidade, e também ao caráter dicotômico do pensamento racional moderno: trata-se, na leitura decolonial, de uma busca por homogeneidade que só pode ser alcançada pela exclusão do Outro — não ocidental, não universal, não civilizado.

Decolonialidade e Direito [7].

Tratando especificamente de intersecções possíveis entre o campo jurídico e o pensamento decolonial, tem sido observado crescente debate entre as áreas da Sociologia e Antropologia Jurídica, Direito Ambiental, Direito Comparado (sobretudo quanto ao constitucionalismo latinoamericano) e Direitos Humanos — ainda que muitos trabalhos jurídicos ignorem a questão colonial como aspecto estruturante do Direito. Temáticas como a formação de Estados nacionais e plurinacionais, a postulação de direitos da natureza, criminologia decolonial e crítica aos Direitos Humanos são pontos de destaque.

A abordagem decolonial quanto ao Direito dá continuidade à análise das formas de pensar arquitetadas de modo binário, típico do racionalismo ocidental. Assim, compreende que o jurídico manifesta sua formação colonialista sobretudo na categorização a partir de opostos, a qual não abarca multiplicidades: o legal vs. o ilegal; o permitido vs. o proibido; o criminoso vs. o não criminoso. Além disto, o pensamento decolonial também tem se dedicado ao estudo e prática de ferramentas de resistência às hierarquias sociais, raciais e de gênero reforçadas pelo ordenamento jurídico, bem como ao questionamento sobre ser possível a existência de um “direito decolonial” ou se o Direito, como parte da Modernidade, deixaria de existir com o fim desta (discussão semelhante à realizada por uma parte dos autores marxistas ao tratar de Direito e Capitalismo).

O tema tem sido estudado em toda a América Latina, sobretudo nos países andinos. No Brasil, podem ser citados como referência os grupos de estudos: Moinho Jurídico (UFPE) [8]; Núcleo de Estudos Filosóficos (pós-graduação da UFPR)[9]; Núcleo de Direito e Descolonização (USJT) [10]; MINGA — Grupo de Pesquisa sobre Constitucionalismo democrático latinoamericano, novas intersubjetividades e emancipação social (UNEMAT).

Considerações finais.

O crescente interesse pelas teorias e práticas decoloniais reflete a necessidade de se procurar explicações e soluções novas para problemas geograficamente localizados na América Latina — cujo impacto se dá nos mais diversos âmbitos da vida dos povos latinoamericanos, na medida em que, para nós, a Modernidade resultou na Colonialidade do poder, do saber e do ser.

O destaque recebido pelo Giro Decolonial nos últimos anos também parece sintomático de crises relacionadas à percepção do Universalismo, proposto pela Modernidade, como falho — aspecto que dialoga, sobretudo, com o campo jurídico, sua organização binária e construção histórica que, na atualidade, permanece reforçando a subalternização de categorias coloniais. Raça, gênero e classe são recortes imprescritíveis para a compreensão das privações, desigualdades e violências (sobretudo a do Estado) nas sociedades latinoamericanas, incluída a brasileira.

Deve-se ter em consideração, entretanto, que o movimento está em construção e não se propõe a apresentar-se como solução “milagrosa”, capaz de aniquilar tudo que nos é problematicamente característico: no constante ao Direito, por exemplo, a intersecção com o pensamento decolonial encontra-se antes discutindo a materialidade do direito que já existe, do que a possibilidade de um direito decolonial. Neste momento, as teorias e práticas são demonstradas mais como propulsoras de diálogos do que como prescrições: a abertura para o debate crítico com a decolonialidade pode ser promissora tanto para os que se identificam com o Giro, quanto para aqueles que optam por outras epistemologias.

Notas de Rodapé:

[1] MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuiciones al desarollo de un concepto. In.: S. Castro-Gómez, & R. Grosfoguel (Orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: siglo del Hombre Editores. Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, 2007.

[2] Uma boa sistematização de autores do movimento pode ser encontrada no artigo “América Latina e giro decolonial” (BALLESTRIN, Luciana), publicado na Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio — agosto de 2013, pp. 89–117.

[3]Algumas das primeiras publicações do grupo foram: “Manifiesto inaugural del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos” (1998), inserindo a América Latina no debate pós-colonial; “Teorías sin disciplina (latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate)” (1998), uma coletânea de artigos que inclui o Manifesto do grupo e apresenta críticas (feitas por Walter Mignolo) ao grupo de estudos subalternos; e “La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales” (2000), uma das publicações mais importantes do grupo.

[4]QUIJANO, Aníbal (2000). “Colonialidad del poder y clasificación social”. Journal of world-systems research, v. 11, n. 2, pág. 342–386; MALDONADO-TORRES, N. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula rasa., n.9, pp. 61–72, Bogotá, 2008.

[5] Walter Mignolo é o principal intelectual a reforçar essa ideia, havendo escritos, como o capítulo “Decoloniality is an option, not a Mission” do livro On Decoloniality: concepts, analytics, praxis (Walter D. Mignolo and Catherine E. Walsh, 2018); e entrevistas em que discorre sobre o tema. Um comentário breve sobre o tópico pode ser encontrado em: https://www.youtube.com/watch?v=5FcebWb8Q_c

[6] A questão é bastante desenvolvida por Aníbal Quijano em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. Na seção intitulada “Raça, uma categoria mental da modernidade”, o autor afirma que “(…)a raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial.” (p. 108). O texto encontra-se disponível no livro “A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas”, Edgardo Lander (org.), que pode ser acessado na Biblioteca da CLACSO — http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/.

[7] Esta seção é resultado do contato direto/indireto do grupo com o prof. Gabriel Mantelli — por reunião, cursos e materiais disponíveis na internet etc.

[8]O grupo disponibiliza, em sua biblioteca virtual, alguns textos sobre o tema. Acesso em: https://sites.ufpe.br/moinhojuridico/cursos/socjurfdr/biblioteca/

[9]Também conta com acervo virtual sobre Decolonialidade, disponível em: http://nefil-ufpr.blogspot.com/p/biblioteca-do-nefil.html

[10] O grupo, coordenado pelo prof. Gabriel Mantelli, pode ser acompanhado pelo Instagram: @direitoedescolonizacao

Recomendações de mídias para conhecer mais sobre o debate:

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.