O acesso à vacina no contexto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil

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O acesso à vacinação, principalmente no contexto de doenças altamente infecciosas, depende de fatores econômicos. A indústria farmacêutica, responsável pela produção de vacinas, integra o subsistema de base química e biotecnológica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) e segue o padrão competitivo desse setor. [1]

O mercado de vacinas é um oligopólio baseado na ciência, tendo a indústria enfrentado um forte processo de concentração nos últimos anos. O domínio das empresas líderes farmacêuticas globais nesse segmento [2] elevou o custo para a aquisição de vacinas e impôs limites capazes de comprometer e até mesmo inviabilizar o acesso para grupos mais vulneráveis, contribuindo ainda mais para a desigualdade.

A atividade farmacêutica é caracterizada pela grande articulação entre os setores público e privado. O Estado assume o risco nas fases iniciais da inovação, e a indústria nas etapas mais avançadas, bem como na introdução de novos produtos e processos no mercado. [3] Justamente por isso, prevalece a lógica financeira do capital, que evidencia a predominância das empresas líderes no padrão de inovação, o que gera assimetrias entre regiões, países e populações. [4]

Além dessa predominância, o alto valor agregado de vacinas tecnologicamente mais avançadas, a expansão desse mercado a partir do final dos anos 70, e a queda de produtividade de novos medicamentos verificada nos anos 2000, contribuíram para a ampliação do interesse da indústria em investir nesse segmento. [5] Na maioria das pesquisas realizadas no mercado farmacêutico mundial, apenas quatro grupos econômicos (GSK, Merck, Pfizer e Sanofi) foram responsáveis por quase 90% do valor total das vendas de vacinas ao redor do mundo. [6] Ainda, apesar da ampliação do número de produtores de vacinas, poucos são capazes de atender aos padrões de qualidade estabelecidos pela OMS. [7]

No contexto nacional, nota-se a fragilidade tecnológica na inserção do país no quadro de assimetrias mundiais, associadas ao desenvolvimento inconstante do progresso técnico e inventivo no âmbito da saúde. Em termos de políticas públicas, fica clara a necessidade de associação dos processos de transferência de tecnologia com estratégias de capacitação interna, para evitar uma reprodução estrutural permanente das condições de dependência. A subordinação do segmento biotecnológico às empresas líderes farmacêuticas reforça ainda mais as assimetrias e amplia o distanciamento entre as inovações e as demandas sanitárias de regiões negligenciadas.

O panorama de proteção de patentes do país evidencia que os grandes líderes globais também orientam o padrão tecnológico dominante no mercado brasileiro. A produção nacional é exclusivamente pública, mas subordinada a estratégias de transferência de tecnologia. A participação de instituições e empresas nacionais no depósito de patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) para a proteção de tecnologias voltadas ao desenvolvimento e a produção de vacinas é quase inexistente, além de abraçar a manutenção ou até mesmo a ampliação do domínio do padrão tecnológico das grandes líderes globais no país. [8] Ainda que tenhamos obtido sucesso em instituir uma base produtiva que tem sido importante para garantir o acesso universal à vacinação, os esforços de inovação não são suficientes.

Com relação ao CEIS, algumas das vulnerabilidades estruturais da economia brasileira afetam diretamente subsistemas do Complexo e inferiorizam sua capacidade de resposta aos desafios da pandemia e de atendimento às demandas sanitárias da sociedade. A institucionalização do SUS e o relativo êxito de políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico permitiram que setores do CEIS fossem menos afetados pelo aumento da fragilidade produtiva e tecnológica do país, principalmente pela ampliação da demanda. Entretanto, não evitaram processos de desindustrialização, sucateamento, concentração do capital, tampouco o aumento da dependência produtiva e tecnológica de outros países, com ênfase em segmentos de fármacos e de equipamentos médico-hospitalares. Simultaneamente, a capacidade inventiva do complexo também é cada vez mais afetada: no âmbito da pesquisa pública, as instituições de pesquisa são sub financiadas e consequentemente perdem seu potencial; e no âmbito empresarial, o segmento é liderado por empresas multinacionais que concentram seus esforços fora do país. [9]

Por tudo isso, o principal desafio é ultrapassar as estratégias vinculativas da base produtiva local e demanda pública nacional. A superação do dilema de direcionamento dos esforços científico-tecnológicos em saúde para as necessidades sociais permite uma maior variedade de atores, países e alternativas tecnológicas. O enfrentamento das vulnerabilidades do SUS no acesso e internalização dessas tecnologias, produtos e serviços precisa ser compreendido e efetivado como garantia de acesso à saúde da população, sem diminuí-lo às condições vigentes no mercado. Nesse cenário, políticas públicas que viabilizem a reestruturação do CEIS, como um sistema efetivo e dinâmico, figuram como chave para o desenvolvimento nacional.

[1]Gadelha C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciênc Saúde Colet 2003; 8:521–35. Temporão, J. G., Gadelha, C. A. G. The Health Economic-Industrial Complex (HEIC) and a new public health perspective. Oxford Research Encyclopedias Glob Public Health. https://oxfordre.com/publichealth/view/10.1093/acrefore/9780190632366.001.0001/acrefore-9780190632366-e-27 (acessado em 4/jul/2021).

[2] Gadelha, C. A. G., Temporão, J. G.. A indústria de vacinas no Brasil: desafios e perspectivas. Estudo setorial. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; 1999. Temporão, JG. A indústria de vacinas e as estratégias de comercialização. Saúde Debate 2003; 27:101–9.

[3]Mazzucato, M. The entrepreneurial state: debunking public vs. private sector myths. London: Anthem Press; 2013.

[4]Gadelha, C. A. G., Nascimento, M. A. C., Braga, P. S. C., Cesário, B. B. Transformações e assimetrias tecnológicas globais: estratégia de desenvolvimento e desafios estruturais para o Sistema Único de Saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2119–32. Bahia, L., Scheffer, M, Tavares, L.R., Braga, I. F. From health plan companies to international insurance companies: changes in the accumulation regime and repercussions on the healthcare system in Brazil. Cad. Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015.23. Hiratuka, C., Rocha, M.A., Sarti, F. Mudanças recentes no setor privado de serviços de saúde no Brasil: internacionalização e financeirização. In: Gadelha, P., Noronha, J.C., Daim, S., Pereira, T.R., organizadores. Brasil saúde amanhã: população, economia e gestão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2016. p. 189–220.

[5]World Health Organization. Global vaccine action plan 2011–2020. https://www.who.int/immunization/global_vaccine_action_plan/GVAP_doc_2011_2020/en/ (acessado em 6 de julho de 2021). Keja K, Chan C, Hayden G, Henderson RH. Expanded programme on immunization. World Health Stat Q 1988; 41:59–63. Landim, A.B., Pimentel, V.P., Gomes, R.P., Pieroni, J.P. Tendências internacionais e oportunidades para o desenvolvimento de competências tecnológicas na indústria brasileira de vacinas. BNDES Setorial 2012; (35):189–232.

[6]Evaluate Pharma. World Preview 2018, outlook to 2024. http://info.evaluategroup.com/rs/607-YGS-364/images/WP2018.pdf (acessado em 4/julho/2021).

[7]World Health Organization. Global vaccine market report. http://origin.who.int/immunization/programmes_systems/procurement/v3p/platform/module2/MI4A_Global_Vaccine_Market_Report.pdf (acesso em 4/julho/2021).

[8]Sabbatini, R., Fonsecai, C. V. C., Covid-19 e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde: fragilidades estruturais e possibilidades de enfrentamento da crise sanitária. Caderno de desenvolvimento: Desafios para o Sistema Único de Saúde no contexto nacional e global de transformações sociais, econômicas e tecnológicas — CEIS 4.0.

[9]Ibid.

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.