Marco Temporal: o sujeito de direito indígena e os limites entre o jurídico e o político

Jacqueline Leite e Julia Rodrigues

Figura 1: Lula Marques/ AGPT

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365 teve julgamento retomado e, após seis sessões e empate no placar, foi suspenso em setembro deste ano. Trata-se de caso central na resolução de conflitos sobre terras indígenas, pois tem por finalidade decisão acerca da aplicação da tese do “marco temporal” — interpretação que afirma aos indígenas a possibilidade de reivindicar a demarcação de terras apenas das áreas que estavam sob sua posse ou em disputa até a data de promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988).

O reconhecimento da repercussão geral do caso pelo STF em abril de 2019 amplia sua relevância: a decisão tomada acerca do pedido de reintegração de posse do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra os indígenas do povo Xokleng e a Funai fixará, também, tese para resolução de outros casos envolvendo terras indígenas e, especificamente, dos demais pedidos de demarcação (estima-se que existam cerca de 310 terras cujo processo está estagnado). Assim, a decisão da Corte atinge as populações indígenas como um todo, podendo negar ou reconhecer seu direito fundamental à terra e sua dignidade.

Para além de sua centralidade no mérito exposto, o debate quanto à validade da tese do Marco Temporal advém de um impasse muito anterior: a falta de reconhecimento do indígena como um sujeito de direito. Com o intuito de abordar adequadamente a afirmação prévia, é preciso retornar ao período colonial do território brasileiro. Logo na chegada dos europeus, os povos indígenas foram lidos por duas óticas: a do monstro e a da criança. Iniciando pela primeira, pode-se perceber seu surgimento no começo das Grandes Navegações, quando as terras não europeias ainda eram pouco exploradas e boa parte dos marinheiros não voltava para casa. O indígena, então, era visto como o maligno em meio ao paraíso natural, cabendo ao europeu se sacrificar perante aos canibais, ou civilizá-los [1].

Porém, passado esse momento inicial, a intenção civilizatória prevaleceu. Com o genocídio imposto às comunidades tradicionais, o indígena passou a ser visto como um ser inocente, inferior, sem cultura e conhecimento. Daí advém uma das razões, a religiosa, para a não escravização indígena: a Guerra Justa. Assim, caberia aos jesuítas catequizar os povos e garantir sua utilidade à sociedade europeia que chegava. Ambas essas etapas podem ser vistas pela própria iconografia, que iniciou-se selvagem e passou para um pacifismo didático.

Figura 2: Monstro de S. Vicente, 1570. In. Tratado da terra e história do Brasil. The John Carter Brow Library at Brown University.

Figura 3: Albert Eckhout. Mulher tupi 1641–44. Museu Nacional da Dinamarca.

Se na colonização a diretriz inicial foi da religião ao lado do governo, o Império consolidou políticas indigenistas marcadas pela assimilação e civilização daqueles aos quais a posição de inferioridade foi imposta. Com a República, por sua vez, consolidou-se a legislação que caracterizava o indígena como um ser inferior a ser tutelado, em memória à noção infantilizada e vertical do europeu em relação ao nativo. Assim, desde o início, o tratamento ao indígena possuía intenções de aniquilamento cultural e assimilação. Tirando-o da noção de ser humano, a legislação brasileira o tratava como um ser incapaz.

Porém, cabe a ressalva que a própria noção de “direito indígena” é uma forma de remover parte de sua cultura, na medida em que os condiciona a serem sujeitos de um direito alheio, europeu e colonial. Ainda que com as melhores intenções — o que não ocorria — o direito entra no território de tais comunidades hierarquicamente, de cima para baixo, sem a consideração de uma civilização pré-existente. Como mencionado, as melhores intenções são contraditórias: a perspectiva dos povos indígenas, apesar de amenizada e colocada por baixo dos panos, é de projeto de aniquilamento desde que o homem branco tomou conhecimento de sua existência.

O cenário de violação de direitos humanos contra povos indígenas, logo, persistiu durante a Ditadura Militar, sendo reconhecidas as práticas sistêmicas de genocídios e massacres [2] no período. Essas ações, além disso, foram vinculadas à execução de projetos desenvolvimentistas — doutrina entendida pelos militares como a que traria maior segurança e “poder” ao país. Nesse contexto de caracterização dos movimentos indígenas como ameaças à segurança nacional, deu-se a criação da Funai — à época, bastante militarizada. A discussão institucional acerca das atrocidades cometidas e dos direitos das populações indígenas (e com sua participação no debate) só volta à tona com o início dos trabalhos constituintes.

O período da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) merece especial destaque para compreensão dos aspectos que pautam o julgamento do Marco Temporal. Os movimentos indígenas — representados pela União das Nações Indígenas (UNI), aliada à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e à Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) — propuseram emenda popular cuja finalidade era estabelecer e assegurar os direitos dos povos indígenas na futura Constituição. A proposta feita pela UNI tratava de demarcação de terras; reconhecimento de seus costumes, tradição e organização; direito ao usufruto de seu território. Objetivava também a modificação de dois artigos já propostos, os quais discriminavam os indígenas em dois grupos: aqueles que, com elevado grau de aculturação, não mereceriam mais direitos indígenas, e outros para os quais seria mantida tutela jurídica diferenciada uma vez considerados incapazes.

O histórico da Ditadura Militar e da ANC, que não teve nenhuma candidatura indígena eleita para participação do processo constituinte, reforçam a persistência do tratamento desumanizador dos indígenas. Além disso, apenas dois artigos do texto final foram dedicados a esse grupo (artigos 231 e 232). Ainda assim, a Constituição de 1988 representa um ponto de inflexão [3] na tendência histórica exterminadora: os artigos reconhecem a organização social, os costumes, línguas, crenças e tradições indígenas, bem como seus direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas — conferindo dever da União de demarcá-las e fazer respeitar seus bens — e também afirmam a capacidade jurídico-processual dos indígenas, suas comunidades e organizações para ingressar em juízo.

A partir desses avanços, principalmente no mérito legal mencionado, pode-se voltar ao debate entre sujeitos de direito e o surgimento do Marco Temporal. A discussão, que chega à Suprema Corte nos dias atuais, surgiu de um caso específico de 2009 decidido pelo mesmo Tribunal: a criação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Porém, se o próprio STF argumentou que o fato da terra ser ocupada desde antes de 1988 era um argumento específico para aquele caso, porque tal retórica foi transformada em tese?

Grande parte da força do Marco Temporal advém de sua instrumentalização pelos agropecuaristas. Historicamente, a Bancada Ruralista assume posições favoráveis ao aumento de terras de cultivo, o que aparece com frequência na defesa do desmatamento. Porém, também existe um certo sentimento de liberdade em questionar a propriedade indígena, como se eles fossem menos detentores do que os demais sujeitos. Juntando o apagamento do caráter de sujeito de direito ao argumento da improdutividade das terras indígenas (segundo o Presidente da República, existiria “muita terra para pouco índio” [4]), a tese trazida pelo caso Raposa Serra do Sol viria como chave perfeita para uma defesa legalista da destituição dos direitos originários à terra. Isso, pois permite uma pacificação inquestionável dos conflitos agrários, a partir de uma decisão do STF favorável ao desenvolvimento econômico e à segurança jurídica.

Parcela considerável da força desse discurso, ainda, pode encontrar suas raízes (e frutos, uma vez que a falta de representatividade e o cerceamento de direitos são retroalimentativos), na baixíssima quantidade de representação indígena na política institucional. O mesmo Congresso que possui 240 deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária [5], tem eleita uma única deputada indígena, Joenia Wapichana (REDE).

Ao enxergar os esforços em se opor aos direitos jurídico-processuais dados aos indígenas, torna-se difícil pensar que essa baixa representatividade é mera coincidência. Desde a falta de acesso às urnas eleitorais pelas comunidades tradicionais, até a histórica visão de superioridade tida ao olhar para tais povos, múltiplos fatores barram os indígenas das instituições do Estado de Direito brasileiro. Justamente por isso, o reconhecimento da importância da participação dos povos indígenas no julgamento do Marco Temporal, dado pelo Ministro Edson Fachin, é central. O caso, assim, admitiu mais de 50 amici curiae, dentre eles, diversas organizações indígenas [6], assumindo papel relevante na resistência contra a tese.

Sinteticamente, pode-se afirmar que oposição à tese do Marco Temporal tem por argumentos centrais [7] a garantia do direito constitucional ao território dos povos originários, a indispensabilidade das terras para garantia da dignidade dos indígenas e para sua própria sobrevivência (entendida, nesse contexto, como física, cultural e imaterial). Como argumentação correlata, há menção ao papel das terras indígenas na preservação ambiental e seu impacto na contenção de mudanças climáticas. Ademais, são considerados também os impactos que a afirmação da tese poderia exercer sobre as terras e os indígenas: caso aceito pelo STF, o Marco Temporal possibilitará a expulsão de povos das terras cuja ocupação antes de 1988 não tenha comprovação ou estivesse em disputa; a suspensão de processos de demarcação históricos e, consequentemente, o fim da proteção a essas áreas, que passam a ter a privatização e comercialização legalizada.

O quadro da disputa teve sua tensão catalisada por manifestações do Presidente da República que citou “repercussões catastróficas” [8] caso o marco temporal não fosse aprovado, como supostas altas nos preços dos alimentos e “paulada” no agronegócio. Seu alinhamento aos interesses dos ruralistas, somado às ameaças de ruptura institucional que tem feito desde a candidatura, são compreendidos como fatores que, indiretamente [9], levaram à suspensão do julgamento — que havia sido retomado próximo ao feriado de 7 de Setembro, no qual o Presidente repetiu suas ameaças golpistas [10]ao Supremo Tribunal. A pauta, que extrapola a discussão jurídica, tornou-se então mais um dos pontos de debate da crise política no país.

Figura 4: Arquivo/Agência Brasil

Por mais que o debate acerca do Marco Temporal tenha finalidade explicitamente jurídica — de definir a regulação de terras em disputa entre povos originários e ruralistas — é inegável que sua resolução toca diretamente nas fronteiras entre o jurídico e o político. Isso se destaca, sobretudo, no impacto que o aceite da tese pode ter sobre a materialidade do indígena enquanto sujeito de direito. Uma vez que há conforto em se negar a dignidade e as condições de sobrevivência de um grupo por inteiro, desnuda-se a segurança jurídica fragilizada, a noção de um sujeito de direito menos detentor que os demais. Menos detentor, pois teve seus direitos impostos desde o período colonial, em uma lógica afastada da conquista e da individualidade e próxima do abaixar de cabeças, seja pelo ganho de direitos, seja por sua retirada.

Nesse sentido, a recusa ao Marco Temporal significa também a recusa à repetição de um padrão de tratamento, historicamente característico no Brasil, que favorece a desumanização do indígena pela violência, pelo direito e pela política.

Notas e Referências Bibliográficas:

[1] LESSA, Agla Mendes de Melo. Imagens e olhares: povos indígenas e a construção/reforço de estereótipos através de imagens dos séculos XVI-XVII e XIX-XX utilizadas como complementos em conteúdos na sala de aula. Tese (Mestrado em História dos Povos Indígenas) — Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, p. 10, 2016.

[2] FERNANDES, Pádua: “A CNV estimou o número de oito mil e trezentos e cinquenta mortos somente em relação a dez etnias. A ditadura militar praticou o crime de genocídio contra povos indígenas como os Waimiri-Atroari, analisada no relatório do Comitê da Verdade do Amazonas (2012), “o genocídio dos Avá- -Canoeiro no Araguaia e os sucessivos massacres dos Cinta Larga no Mato Grosso” (CNV, 2014, vol. II: 201), esbulhos, remoções forçadas e incêndio de aldeias pelo INCRA (PARANÁ. COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE — PR, 2014: 671–679), bombardeio de tribos pelas Forças Armadas com uso de Napalm (SÃO PAULO. COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”, 2015: 32- 33), além da escravização, criação de cadeias clandestinas, proibição de falar a própria língua (um dos elementos do etnocídio3 ), estabelecimento de critérios de “indianidade”, tentativa de “emancipação” de povos indígenas, certidões negativas da existência desses povos para o licenciamento ilegal de atividades econômicas em suas terras etc.”.

[3] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro, 1ª ed. Edusp. p. 341–347.

[4] Bolsonaro quer rever demarcações: “muita terra para pouco índio.” Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/08/30/bolsonaro-quer-rever-demarcacoes-muita-terra-para-pouco-indio.htm>. Acesso em: 18 nov. 2021.

[5] Disponível em: <https://fpagropecuaria.org.br/todos-os-membros/>. Acesso em: 18 nov. 2021

[6] Marco temporal: entenda por que julgamento no STF pode definir o futuro das terras indígenas. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/marco-temporal-entenda-a-importancia-do-julgamento-no-stf-para-os-indigenas?gclid=CjwKCAjw7fuJBhBdEiwA2lLMYd_1uCnr3H7d0-3Tefb41LP0oBBQilh0yHdc8GUr7bCxRWlaLM-ktRoCV7gQAvD_BwE>. Acesso em: 18 nov. 2021.

[7] Quanto à desconstrução das teses jurídicas favoráveis ao Marco Temporal, pode ser consultado o documento “Justiça e o Marco Temporal de 1988: as teses jurídicas em disputa no STF sobre terras indígenas”, disponível em: Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf (terradedireitos.org.br)

[8] Bolsonaro cita repercussões catastróficas para defender marco temporal (uol.com.br)

[9] Marco temporal: as terras indígenas e a crise política — Café da Manhã | Podcast no Spotify

[10] Bolsonaro ameaça o STF de golpe, exorta a desobediência à Justiça e diz que só sai morto — 07/09/2021 — Poder — Folha (uol.com.br)

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PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.