Democracia, República e Império em Star Wars
Por Thiago Miranda Horta
A trilogia original de Star Wars, lançada entre 1977 e 1983 [1], conta a história da guerra civil galáctica, na qual células rebeldes independentes se uniram formando uma aliança republicana para derrotar o Império. Vencendo um exército muito maior e mais bem equipado, a rebelião consegue derrotar o Imperador Palpatine (identidade pública de Darth Sidious), levando o Império à ruína e restabelecendo a República.
Após o lançamento dos três primeiros filmes, Star Wars se tornou uma das mais famosas franquias de ficção científica e fantasia espacial. Foi na figura de seus protagonistas que a série alcançou sucesso mundial. No entanto, foi apenas 30 anos mais tarde que o mundo pôde entender quem era o vilão que Luke e Leia combateram e por qual república lutavam.
Os três filmes lançados no início dos anos 2000, a trilogia conhecida como prequels [2], são responsáveis por narrar a história do inimigo, de como os jedi foram aniquilados, de como os sith ressurgiram e da transição política entre República e Império. O foco narrativo principal dessa trilogia é a transformação de Anakin Skywalker, um jovem jedi cujas profecias apontavam ser capaz de trazer equilíbrio para a força, em Darth Vader, Lorde Sith responsável pela aniquilação dos jedi e pelo ressurgimento dos Sith. O pano de fundo, entretanto, é a corrupção da República Galáctica em um Império autoritário e opressor.
A República Galáctica é a comunidade política formada por milhares dos sistemas planetários da galáxia [3]. Seu órgão decisório máximo é o Senado, formado por representantes escolhidos pelos respectivos planetas. Como em um sistema parlamentarista, o Senado elege o Chanceler, chefe de governo da República, e pode aumentar e limitar seus poderes, bem como retirá-lo do cargo, como ocorreu no episódio I: a ameaça fantasma [4]. A República possuía intervenção mínima nos planetas, que tinham liberdade de escolher seus líderes, seu sistema de governo e gerir sua economia.
A República durou mais de mil anos, até que começou a sofrer com a saída de planetas da comunidade, que progressivamente se juntaram em um movimento separatista. Os planetas acusavam a República de ter se tornado corrupta, burocrática e ineficiente. A federação do comércio (que possui assento no senado) é quem, com interesse na maximização dos lucros, dá início ao exército separatista. Conde Dooku (Darth Tiranous), comandado por seu mestre Darth Sidious (Palpatine), é quem os lidera a dá ordens para atacar sistemas republicanos ou neutros, sob o pretexto de garantir sua independência em relação à República.
A fragilidade da República foi motivada ainda pelo seu distanciamento das populações vulneráveis em planetas passando por necessidade. O oitavo episódio da primeira temporada de Clone Wars [5] demonstra como apoiadores da República se voltaram aos separatistas diante da ineficácia do governo em garantir a sobrevivência de sua população.
A trama ainda demonstra a dificuldade que a República tem de conter a ameaça autoritária em seu interior. Desde o início das Guerras Clônicas, o Conselho Jedi sabe da presença de um Sith em posição de destaque no Senado, mas nunca soube como descobrir sua identidade ou mesmo prevenir sua ascensão a Imperador. Nem mesmo a federação do comércio, que abertamente financiava os separatistas, perdeu sua vaga no Senado. A República caiu também porque possuía grande tolerância a ideais autoritários.
Por mais que os Sith sejam retratados como expressão de maldade e autoritarismo no universo de Star Wars, deve-se notar que eles seguem os critérios formais que tornam a República uma democracia. O senado separatista vota e pode adotar medidas contrárias ao chefe de governo (Conde Dooku). Os planetas que se juntaram voluntariamente continuam autônomos e podem eleger seus representantes para o Senado. Os separatistas podem justificar ainda suas invasões a outros planetas considerando-as ações de guerra, necessárias diante da negativa da República em reconhecer a sua autoridade.
A característica fundamental de uma sociedade democrática em Star Wars não repousa principalmente em critérios formais, como a representação, a autonomia dos planetas ou em mecanismos de controle do poder. Pelo contrário, a democracia é melhor identificada pelos valores assumidos como justos pelo governo e seus representantes. A República é democrática na medida em que é guiada pelos valores dos Jedi, e, os separatistas (e posteriormente, o Império) são antidemocráticos por terem como princípios os valores dos Sith.
Os Jedi são uma ordem de protetores capazes de extrair poder do lado luminoso da força. Seguem os princípios ditados no Código Jedi, que exige resistência às paixões e busca de calma, harmonia, paz, conhecimento, resignação e liberdade de espírito em relação aos sentimentos. Tudo isso com o objetivo de diminuir o sofrimento, tanto próprio, quanto alheio. Devem treinar o uso da força, mas utilizá-la apenas para autodefesa e proteção dos indefesos. Agiam como protetores da República, submetidos às ordens do Senado.
Apesar de defensores da democracia, os Jedi não passam por nenhum tipo de controle social [6]. Suas habilidades e conhecimentos dão grande liberdade e autonomia para o Conselho Jedi enquanto um órgão de proteção da República. Em A Vingança dos Sith, o Conselho Jedi inclusive dá voz de prisão ao Chanceler e o ameaça de morte no momento em que descobrem que ele pode ser um Sith. Mesmo que houvesse razões para a prisão, que os Jedi no momento não conheciam, fica claro que a defesa da democracia é a defesa dos valores dos Jedi e o combate aos Sith.
Mesmo com as mesmas instituições democráticas, divisão dos poderes e representação, os separatistas são autoritários e, na linguagem da animação Clone Wars, malvados. A caracterização decorre também dos valores do governo e de seu Chanceler, o lorde Sith Conde Dooku (Darth Tiranous). Os Sith também são capazes de extrair poder da Força, mas de seu lado sombrio. São guiados pela ideia de que o controle sobre as paixões nunca é possível, por isso, devem ser utilizadas para se fortalecer e aumentar o seu poder, pois, só com o poder ganha-se liberdade.
A democracia que conhecemos é caracterizada por esses mesmos aspectos formais, mas também pelos ideais de igualdade, liberdade, respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. A democracia em Star Wars, pelo contrário, é indiferente a questões formais, mas é, igualmente, um regime marcado por ideais. Porém, baseia-se nos ideais jedi, especialmente no controle das ambições individuais e na diminuição do sofrimento.
O autoritarismo é, também, um regime de ideais em Star Wars, independente de respeitar ou não aspectos formais. Os ideais sith caracterizam-no. Portanto, Star Wars é narrado dando grande importância à democracia e ao repúdio à ditadura, no entanto, baseia-se somente em uma dimensão valorativa destes conceitos.
A queda da República ocorre então quando assume os ideais e código de conduta Sith, abandonando os Jedi. A República cai no momento em que Palpatine assume-se Sith e persegue os Jedi. Do ponto de vista das instituições, pouco muda. O Senado continua ativo e sendo o último órgão decisório. É justamente o Senado quem garante mais poderes ao Chanceler e aplaude sua decisão de tornar-se imperador.
A aprovação formal não implica reconhecimento da legitimidade ou do caráter democrático do Império. Os princípios Jedis tendo sido abandonados, foram também a democracia. É isso que separa a defesa de Padmé e Obi-Wan da democracia da defesa de Anakin/Darth Vader da República, na batalha final de Mustafar.
A transição do regime de Star Wars segue como referência a queda da República Romana e o início do Império. Além de se utilizar os mesmos termos, o fim das duas Repúblicas ocorre em decorrência do acúmulo de poderes nas mãos de um magistrado inicialmente eleito. Nos dois casos, quem confere esses poderes é o Senado com a intenção de pôr fim às guerras e garantir ordem e integridade territorial ao Império. Também continuam ativos os respectivos Senados.
Assim como em Roma, a transição não representava uma mudança de regime, mas o auge e o aprofundamento da República. Palpatine em momento nenhum defende o fim da República, ou condena a democracia, pelo contrário, declara que só aceitará com pesar seus novos poderes por conta de seu amor pela democracia. Star Wars, pelo menos, nos dá personagens como Padmé e Obi-Wan para nos lembrar que movimentos políticos podem ser autoritários mesmo quando se escondem atrás dos procedimentos de tomada de decisão e são apoiados pelas maiorias.
[1] Os episódios: IV: uma nova esperança; V: o império contra-ataca; VI: o retorno de jedi
[2] Os episódios: I: a ameaça fantasma; II: ataque dos clones, e III: a vingança dos sith
[3] Todos os filmes do universo Star Wars se passam na mesma “galáxia muito, muito distante”
[4] Após uma invasão da federação do comércio em seu planeta natal, Naboo, a então rainha Padmé Amidala moveu uma moção de desconfiança em relação ao Chanceler Valorum, abrindo caminho para a ascensão de Palpatine.
[5] Séria animada que narra os eventos das guerras dos clones. Na cronologia do universo Star Wars, ocorre entre o filme 2 e o 3 e narra os eventos que fizeram a república perder força em detrimento dos separatistas.
[6] Conforme anotado por Paul Jackson, no blog de Ciências Social da Universidade de Birmingham, no texto Star Wars, Democracy and Elites: https://blog.bham.ac.uk/socialsciencesbirmingham/2018/05/03/star-wars-democracy-and-elites/