Consentimento e Autoridade Política

Por Caio Xavier

Tempos de crise suscitam dúvidas sobre os fundamentos da legitimidade política, sobretudo quando os líderes desatendem às expectativas mínimas dos cidadãos. Considero momento particularmente oportuno, portanto, para problematizar uma alegada fonte da autoridade política, bastante popular no pensamento político: o consentimento dos governados. Proponho organizar a discussão a partir da argumentação desenvolvida pelo jusfilósofo Joseph Raz, contida principalmente no artigo ‘Government by Consent’ [1].

Convém esclarecer algumas premissas conceituais antes de examinar a relevância moral do consentimento político. A relação de autoridade é a subordinação ao poder da autoridade de criar normas valorativamente vinculantes. Ao contrário de deveres morais em que o agente só se obriga a condutas determinadas, como as promessas, o conteúdo das diretivas da autoridade não está predefinido. Na relação de autoridade, as condutas devidas serão definidas apenas após o ato de subordinação à autoridade, embora ela possa estar submetida a restrições substanciais e procedimentais para a emissão de normas. A autoridade política pode particularizar-se por circunstâncias fáticas (p.ex. uso da violência como sanção), mas não difere de outras formas de autoridade quanto à natureza ou grau de obrigatoriedade da norma criada.

O apelo valorativo do consentimento é estar imediatamente conectado com outra ideia bastante arraigada no ideário político contemporâneo, a autonomia moral do sujeito. Se a autonomia resguarda um ‘estado original’ de liberdade dentro do qual há pleno controle de cada um sobre sua própria conduta, então a vontade (livre e informada) do próprio indivíduo poderia criar um dever para si. No fundo, o poder de criar obrigações morais decorreria do controle de cada um sobre sua esfera moral, ou seja, da capacidade de autolimitar a liberdade originária intrínseca a sua condição de ser autônomo.

Contudo, esse raciocínio aparentemente simples não explica adequadamente o elemento vinculante do compromisso. A vinculatividade só vai manifestar-se quando, em um momento posterior ao acordo, o indivíduo divergir da conduta à qual se comprometeu e, ainda assim, for moralmente forçado a cumpri-la. O verdadeiro enigma da obrigação consentida é, portanto, o fenômeno da cisão temporal entre o momento do surgimento voluntário da obrigação e sua execução compulsória. Não é óbvio como uma decisão realizada por um Eu do passado autônomo poderia limitar em definitivo a autonomia do Eu do futuro.

Essa permanência temporal do dever prático oriundo do consentimento não se presta a uma justificação única; ela tem de ser construída contextualmente para cada categoria de obrigações passíveis de serem assumidas. Por exemplo, as vantagens econômicas individuais e coletivas de poder obrigar-se a satisfazer um crédito poderiam explicar o dever moral do consentimento nesse tipo de operação patrimonial. Porém, essa fundamentação não se aplicaria a outras espécies de deveres aos quais se pretende consentir fora da seara negocial, como o dever de fidelidade em relacionamentos amorosos. Assim, a vinculatividade da concordância em certos contextos não autoriza inferir que ela também se aplica à relação política, que demandaria explicação específica para suas características.

Ademais, reconhecemos que, por mais que se alarguem os deveres passíveis de criação por consentimento com o fornecimento de novas justificações contextuais, há um limite para sua força normativa relativo ao conteúdo da ação consentida. Uma pessoa que consente em integrar uma organização criminosa não comete uma injustiça com seus comparsas ao arrepender-se. O consentimento à autoridade política, portanto, poderia ser questionado devido a peculiaridades no conteúdo de tal pacto que o tornariam insuscetível de autovinculação.

Nesse sentido, a nota característica da relação de autoridade governamental é sua abrangência em termos de interferências na vida do sujeito que seriam validadas em um único ato de consentimento. Admitimos que há acordos de efeitos mais singelos em que o conteúdo eventualmente reprovável não é suficiente para descartar a obrigatoriedade moral do consentimento fornecido, a exemplo de contratos moderadamente desequilibrados. Por outro lado, no acordo político, o ônus injustamente imposto ao Eu do futuro pode ser tão intenso que já não haja justificativa para impedir que o agente reveja sua decisão pretérita de consentir.

Por essa razão, penso que um Estado-Leviatã, que não exclua todas senão as mais singelas imoralidades [2] do âmbito de sua pretensa autoridade, estaria pré-excluído da vinculação via consentimento, mesmo que o agente fosse informado dessa onipotência e tivesse concordado com esse arranjo. A tolerabilidade do grau de injustiça do acordo é bastante reduzida no pacto político, exatamente em razão de seu maior impacto nas vidas das pessoas. Portanto, o consentimento político tem sua validade dependente do conjunto de condutas sobre as quais o governante reivindica autoridade de tornar obrigatórias.

Para além dessa limitação fundante do poder do consentimento, estaria ele apto a fundamentar a legitimidade de uma autoridade que imponha normas majoritariamente justas aos governados? Mesmo essa significativa limitação material poderia esbarrar no interesse intrínseco na autonomia moral de cada pessoa.

Tal interesse extrai-se do fato de que em certas situações é mais valioso o agente deliberar sobre sua conduta por si só do que agir corretamente sob ordem de terceiro. Seja pelo grande impacto no curso da vida do sujeito (p.ex. eleição de carreira), seja por uma demanda de autenticidade na ação realizada (p.ex. manifestações de apreço em amizades), penso que diversas escolhas valorativas estão excluídas do consentimento político mesmo que tenham respostas objetivamente corretas, porque violam gravemente a autonomia individual.

Preenchidas ambas as condições limitadoras do poder da autoridade política consentida — excluídas a maior parte das condutas imorais e as condutas morais nas quais prepondera a autonomia decisória — ela seria legítima. Sujeitando-se a precondições tão estritas, entretanto, considero proveitoso perquirir qual a verdadeira relevância do consentimento em relação aos demais requisitos para que se possa vincular voluntariamente à autoridade. Não estaria ele tornado supérfluo ao valer somente em situações já por si tão exigentes?

A controversa conclusão de Raz é de que essas precondições prescindiriam do consentimento para vincular moralmente os destinatários à autoridade por força de sua concepção da autoridade como serviço, cujos detalhes não será possível abordar neste texto [3]. Independentemente de se aceitar a posição raziana, não me parece evidente que seja eticamente defeso compelir um obstinado tolo a seguir uma autoridade que promulgue normas justas e benéficas para ele e, simultaneamente, preserve um espaço de autonomia para a gestão de (e realização de tolices sobre) seus assuntos privados.

Finalmente, para além do tom inconclusivo desta breve reflexão, julgo que ela fundamenta uma perspectiva do chamado contrato social mais adequada para os fins a que ele se propõe. Para que o consentimento político seja moralmente vinculante, devem-se compreender certos direitos fundamentais de resistência à normatização jurídica como preexistentes à autoridade estatal, ao invés de concedidos por ela. Em nenhum momento eles teriam sido submetidos ao poder normativo político, porque o assentimento do cidadão em relação a eles seria inválido. Ao menos em termos morais, há cláusulas pétreas consideravelmente restritivas do âmbito da legitimidade política.

[1] Ethics in the Public Domain, New York: Oxford University Press, 1994, pp.355–369.

[2] Uma controvérsia fundamental da filosofia política é saber o grau de injustiça que uma norma emitida por uma autoridade legítima pode ter e ainda assim manter sua vinculatividade moral. Esse debate é complexo demais para ser discutido nos estreitos limites deste texto, porque implicaria examinar minuciosamente o que de fato torna uma autoridade legítima ao invés de restringir-se a determinar se o consentimento pode fazê-lo. Parece-me razoável, portanto, assumir, para fins de construção dos limites da legitimação política via consentimento, uma postura cautelosa, excluindo ‘todas senão as mais singelas’ imoralidades para que a concordância do governado seja válida. Essa também é a posição de Raz, que sustenta que a autoridade que acerta na maior parte de suas normas mantém a compulsoriedade das normas eventualmente injustas, desde que a injustiça da norma individualmente considerada não seja grave.

[3] Para aprofundamento sobre o conceito raziano de legitimidade, para o qual o consentimento é irrelevante, cf. RAZ, Joseph. Between Authority and Interpretation, New York: Oxford University Press, 2009, pp. 126–166.

--

--

PET Sociologia Jurídica | Direito - USP

Grupo de extensão da graduação, pautado pela pesquisa interdisciplinar, aprimoramento do ensino jurídico e intervenção academicamente qualificada.